O cientista brasileiro, reconhecido internacionalmente por sua perspectiva cidadã dos territórios, deixou reflexões sobre a importância do pensamento crítico e soluções múltiplas para os problemas globais
“O mundo é formado não apenas pelo que já existe, mas pelo que pode efetivamente existir”. Ao dizer esta frase, na década de 1980, o geógrafo e cientista brasileiro Milton Santos (1926-2001) não poderia prever as profundas consequências provocadas pela pandemia do coronavírus, mas já alertava sobre a necessidade de novos modelos e soluções na construção de sociedades sustentáveis.
O mesmo alerta fez sobre as desigualdades sociais e sobre os perigos de apostar em um modelo único para solucionar os múltiplos problemas globais. Muito à frente de seu tempo, Milton Santos elevou a Geografia dos anos 1980 e 1990 a um patamar multidisciplinar, usando os campos da economia, sociologia e política para orientar as reflexões feitas nos mais de 40 livros publicados por ele em vida.
Por seu trabalho notável também nas áreas do jornalismo e da educação, consagrou-se como um dos mais renomados intelectuais, reconhecido por suas contribuições tanto nacional quanto internacionalmente. No ano de 2021, o cientista completaria 95 anos e seu legado continua atual. Nina Santos, neta de Milton, o define da seguinte forma:
“Acho que a principal herança de Milton Santos é justamente ressaltar a importância do questionar, do pensar diferente, de defender o seu ponto de vista mesmo que contra uma maioria que questiona a sua posição.”, disse Nina, em entrevista ao Brasil de Fato.
Infância e Juventude
Milton Santos nasceu no dia 3 de maio de 1926, no pequeno município de Brotas de Macaúbas, região da Chapada Diamantina (BA). Criado por uma família de professores, foi alfabetizado em casa e aprendeu também álgebra e francês. Quando completou 10 anos de idade, foi estudar em um internato em Salvador, onde viveu até os 18. Foi nesta época que seu interesse pela Geografia despertou. Aos 13, ajudava com as aulas na escola, primeiro ensinando matemática e depois dedicando-se à ciência que viria a estudar com mais profundidade no futuro.
Formação Acadêmica
A primeira formação de Milton Santos foi na área jurídica, ao se graduar em Direito na Universidade Federal da Bahia em 1948. Mesmo assim, não se distanciou da Geografia e lecionou a disciplina no Colégio Municipal de Ilhéus durante o mesmo período. Ao longo da graduação, foi correspondente no jornal “A Tarde”, onde se editor. O primeiro livro do cientista baiano, Zona do Cacau, foi escrito nesta época e sua análise trazia o olhar para a geomorfologia, sem esquecer das dimensões econômicas e sociais dos territórios.
Academia e política
Após participar do Congresso Internacional de Geografia, Milton foi convidado pelo professor Jean Tricart para fazer doutorado na Universidade de Estrasburgo, na França. Formou-se em 1958, com a tese O Centro da Cidade de Salvador. Quando voltou ao Brasil, além de criar o Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais, Santos assumiu o cargo de subchefe da Casa Civil na Bahia, sob o mandato do presidente João Goulart. Já na gestão do governador da Bahia, Lomato Junior, ocupou a posição de presidente da Comissão de Planejamento Econômico.
Exílio
Com o estabelecimento da ditadura militar no Brasil, a partir do golpe de 1964, Milton recebeu ordem de prisão. Por causa de um princípio de AVC durante a detenção, o intelectual foi solto e cumpriu prisão domiciliar até a embaixada da França no Brasil conseguir negociar sua saída do país, a convite da Universidade de Toulouse. Durante 13 anos, lecionou em universidades da França (Universidade Panthéon-Sorbonne)do Canadá (Universidade de Toronto), dos Estados Unidos (Universidade Columbia e MIT), da Tanzânia (Universidade de Dar Salaam) e da Venezuela (programa da ONU).
Impacto sem fronteiras Pelo seu trabalho, recebeu o título de Doutor Honoris Causa em 20 universidades nacionais e internacionais. Conciliou a carreira acadêmica com a atuação em programas da Organização das Nações Unidas e da Organização Internacional do Trabalho, elaborando projetos na América Latina. Em 1994, foi vencedor do Prêmio Internacional de Geografia Vautrin Lud,espécie de Nobel da Geografia. Milton foi o único brasileiro e latino-americano a receber o prêmio.
Legado
No Brasil, deu aulas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e na Universidade de São Paulo (USP). Em 1990, descobriu um câncer na próstata, mas seguiu carreira como professor até os anos 2000. Seu trabalho foi marcado pelos estudos da urbanização dos países do Terceiro Mundo e pela crítica ao modelo de globalização dos anos 1990, mas as contribuições que deixou foram além, influenciando na construção de uma ciência mais conectada com os desafios do século XXI.
Cidadão do mundo, pesquisador local
Em 1996, dois anos após Milton Santos receber o prêmio Vautrin Lud, o Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da USP organizou um encontro internacional para homenageá-lo.O nome escolhido para o evento foi “O mundo do cidadão, cidadão do mundo” , para reforçar a conexão entre as obras do intelectual brasileiro e a construção acadêmica de uma Geografia que considera os aspectos da cidadania na formação dos territórios globais.
“O geógrafo é, antes de tudo, um filósofo, e os filósofos são otimistas, porque diante deles está a infinidade”, era assim que Milton definia a ciência para a qual dedicou a vida. Ainda que tenha se destacado internacionalmente e vivido durante muitos anos fora do país, ele nunca perdeu o Brasil de vista em suas análises.
Os primeiros livros e teses escritos por ele tinham como perspectiva o território da Bahia, onde nasceu, depois o do Brasil e, em seguida, abordou as áreas dos países latino-americanos. Ao fundar o Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais, logo após concluir o doutorado na França, o cientista materializou o compromisso de retornar o conhecimento adquirido para a pesquisa e o desenvolvimento de soluções locais.
Pensamento crítico
Justamente por defender a flexibilidade de alternativas que levam em consideração as particularidades e desafios dos territórios, Milton era um grande crítico da globalização, processo de exportação de um modelo único que interliga economia, política, sociedade e cultura a nível planetário e que em meados dos anos 1990 era a perspectiva aceita pela maior parte dos intelectuais do Brasil e do mundo.
Ainda que em minoria, o geógrafo manteve seu posicionamento contra o processo, chamando a atenção para as desigualdades sociais que seriam potencializadas pela forma como a globalização era posta em prática até então.
O pensamento crítico de Milton Santos permeou todo seu trabalho, com temas como a urbanização desigual dos países do Terceiro Mundo, a importância de democratizar o ensino superior brasileiro e o racismo estrutural, que se opunha à ideia de cidadania e direitos humanos.
Trecho de uma das últimas entrevistas dada por Milton Santos, para o documentário O mundo global visto do lado de cá, do cineasta Silvio Tendler.
Pioneiro da educação midiática
Aplicando em sala de aula
O plano de aula A Geopolítica contemporânea, disponibilizado pela Nova Escola, traz as reflexões de Milton Santos para a sala de aula, voltado para a faixa etária do 9º ano do Ensino Fundamental.
Por ter atuado como jornalista durante um período de sua vida, Milton Santos enxergava a comunicação midiática como parte fundamental da construção de uma sociedade. Embora não tenha chegado a presenciar os debates recentes sobre o aumento da circulação de notícias falsas, era crítico em relação a forma como as informações eram veiculadas e interpretadas.
“Um dos traços marcantes do atual período histórico é, pois, o papel verdadeiramente despótico da informação”, escreveu o intelectual em sua obra Por uma outra Globalização, de 2000. Para ele, era preciso ter senso crítico ao interpretar fatos, pesando os interesses por trás de cada informação recebida.
A educação midiática, considerada uma das competências fundamentais para o século XXI, tem como premissa construir essa leitura crítica, a partir de ferramentas que permitirão identificar o contexto de uma mensagem, o gênero textual a qual pertence e a motivação por trás de determinada informação. A ideia é que este letramento seja trabalhado desde cedo, sobretudo com crianças e jovens.
Para conhecer mais sobre Milton Santos:
O site oficial de Milton Santos é a principal fonte de referência sobre os trabalhos do intelectual brasileiro. Mantido pela família Santos, tem como objetivo reunir informações e materiais que possam ser úteis a todos que se interessem pela obra do geógrafo.
Encontro com Milton Santos → O documentário O mundo global visto do lado de cá, dirigido pelo cineasta Sílvio Tendler, surgiu a partir de uma das últimas entrevistas do geógrafo, concedida em 2001. O tema central são as críticas de Milton ao desenvolvimento dos processos de globalização e abre espaço para refletir sobre alternativas de construção coletiva.