Especialista comenta os prejuízos para a saúde física e mental e aponta caminho para um melhor uso das tecnologias
A pandemia de Covid-19 mudou totalmente a vida de Mellyssa Amador, de 7 anos. De uma hora para outra, ela perdeu o contato com os amiguinhos, com a rotina da escola e com o brincar no playground. As mudanças foram impactantes, mas não as únicas. Na nova realidade, TV e celular se tornaram seus grandes companheiros de quarentena. Um verdadeiro excesso de telas passou a fazer parte de sua rotina.
“Desde que estamos em casa, ela passa a maior parte do tempo jogando e assistindo aos vídeos sobre os jogos no YouTube. Ela gosta muito do Tik-Tok também. Eu não vejo problema, porque é a forma que ela encontrou para passar o tempo e não temos muito o fazer agora”, relata Sheila Amador, mãe da menina.
Além de usar as telas para a diversão, Mellyssa tem aulas on-line do 1° ano do Ensino Fundamental I. A mãe não consegue calcular o tempo exato em que ela permanece com algum aparelho eletrônico, mas estima 8 horas diárias. Enquanto a filha está entretida, Sheila trabalha vendendo roupas pelas redes sociais.
“Ela brincava bastante com as outras crianças do prédio e se divertia na escola. Como o isolamento mudou toda a vida dela, resolvi ceder um pouco. Facilita para mim, porque eu preciso trabalhar também”, comenta.
A pandemia do novo coronavírus colocou a exposição excessiva às telas em pauta, já que agora até as interações humanas migraram para o ambiente virtual.
O psicólogo Cristiano Nabuco, que coordena o Núcleo de Dependências Tecnológicas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMSUP), vê diariamente os danos causados pelo uso excessivo de aparelhos eletrônicos.
Ele destaca que a exposição exagerada, mesmo em tempos de isolamento social, pode trazer problemas temporários ou permanentes para a saúde física e mental.
Reflexos no corpo e na mente
O uso excessivo das telas no período noturno pode prejudicar a qualidade do sono, especialmente na infância e adolescência, pois a luminosidade das telas manda “sinais” para o relógio biológico.
“Conforme vai anoitecendo, acontece a liberação da melatonina, aquele hormônio que é liberado pelo cérebro para a indução do sono. Então, quando eu tenho essa luminosidade incidindo, a mensagem que eu mando para o cérebro é de que ainda é dia. E à medida que ainda é dia, várias funções que deveriam ser suprimidas, deixam de ser”, explica o psicólogo.
Ainda falando sobre saúde física, ele conta que está cada vez mais comum um quadro conhecido como “postura do iphone”: o envergamento da coluna para ter a cabeça voltada para o telefone celular.
“O peso do crânio varia ter entre 4 e 4,5 quilos. Então, ficar longos períodos com a cabeça inclinada, causa problemas ortopédicos bastante importantes”. Há também o risco da “síndrome do olho de computador”, provocada por excesso de exposição a telas. “A gente pisca em média a cada 9 segundos. Quando você tem uma tela, você pisca 3, 4 vezes menos, produzindo também o ressecamento do globo ocular, criando aí um pequeno trauma”, conta o especialista.
A audição também pode sair prejudicada. “Nós temos fones de ouvido com decibéis equivalentes a turbinas de avião. Então eu posso ter também um trauma transitório ou um trauma, que é mais permanente, e vai causando a destruição dessas células”, complementa.
No ano passado, o uso abusivo de eletrônicos ganhou tamanha proporção que a Organização Mundial da Saúde incluiu o vício em games em sua classificação de doenças e problemas relacionados à saúde, conhecida como CID.
Para Cristiano Nabuco, a alteração no humor é um dos primeiros sinais desse problema. Quanto mais tempo com essas ferramentas, maiores são as chances de ter o humor comprometido.
“Isso quer dizer que, quanto menos tempo eu interajo, menos eu treino o relacionamento interpessoal e capacidades como a empatia, por exemplo”, alerta. “Uma das características básicas que vão regular o sucesso ao longo da vida de uma criança, adolescentes e adultos é a capacidade de se colocar no lugar do outro”.
Baixo nível de concentração, falta de empatia e instabilidade emocional são apenas alguns exemplos dos efeitos prejudiciais para o desenvolvimento da sociabilidade infantil, com o uso exagerado das telas durante a fase de crescimento da criança.
Na vida digital, a criança não enfrenta a frustração e não interage para lidar com sentimentos fundamentais para o amadurecimento. “Ela cresce de uma maneira muito mais voltada para um mundo totalmente customizado, fazendo então com que ela tenha menor tolerância para lidar com o que fuja de sua visão de mundo e de vida”.
Para ajudar pais, educadores e crianças a pensarem em alternativas de atividades que não envolvam tecnologia, a Vivo lançou a iniciativa Vivo Brincar – uma plataforma que reúne diversas informações, dicas e atividades voltadas para a importância do brincar, como, por exemplo, os tutoriais de brincadeiras comandados pela personagem Violeta.
O perigo está no excesso
Em consonância com a importância do tema, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) produziu em 2016 o primeiro documento sobre Saúde de Crianças e Adolescentes na Era Digital a respeito das demandas das tecnologias da informação e comunicação (TICs), redes sociais e Internet, com recomendações para pediatras, pais e educadores.
Durante o período de isolamento social é inevitável que as crianças tenham acesso aos aparelhos eletrônicos. Para Cristiano, a questão não é o uso dos equipamentos em si, mas a falta de equilíbrio com outras atividades fundamentais em família, no modo offline.
“Se você faz um uso saudável, regulado e equilibrado, você está extraindo da tecnologia o que ela tem de positivo. Se você não faz isso, as chances de você ultrapassar essa linha é muito grande”.
Recomendações para o tempo de uso:
- Até 2 anos: não deve usar nenhum tipo de tela
- De 2 a 5 anos: No máximo 1 hora por dia, com intervalos
- De 6 a 10 anos: No máximo 2 horas por dia, com intervalos
- De 11 a 18 anos: No máximo 3 horas por dia, com intervalos
Fonte: Cristiano Nabuco, coordenador do Núcleo de Dependências Tecnológicas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMSUP).
E para seguir com essas indicações é preciso ficar atento à criança e ajudá-la a se desligar dos eletrônicos. Fazer atividades em família, como brincar juntos, assistir filmes, cozinhar e conversar ajudam as crianças a ocupar o tempo de maneira mais saudável.
“O problema é que as escolas estão estabelecendo a mesma carga horária do presencial para o on-line e isso pode causar o efeito estafa, o burnout. A gente precisa alternar, tem que estabelecer intervalos. Precisamos criar alternativas que concorram com os interesses que existem nas telas. Se a gente “largar mão”, está abrindo uma porta perigosa”, finaliza.
Uso das telas e a aprendizagem
Por outro lado, especialistas em educação afirmam que as ferramentas digitais vão se incorporar às atividades escolares no pós-pandemia. Assim, é preciso encontrar alternativas para que essa combinação seja benéfica.
A startup Semente Cinematográfica surgiu justamente para levar pesquisa e o desenvolvimento de práticas de educação audiovisual nas escolas, universidades, ONGs, instituições culturais e órgãos governamentais.
A utilização dos recursos tecnológicos por parte das crianças e educadores varia de acordo com o contexto e com a faixa etária de ambos. Em conjunto, a escola produz materiais como fotos, vídeos curtos e murais digitais usando tecnologias simples, como smartphones.
Para Felipe Leal, um dos coordenadores da startup, a relação com as mídias na educação vai se consolidar em um novo patamar.
“Por isso, talvez a pergunta que caiba aqui é: como queremos educar as crianças no pós-pandemia? A tecnologia sempre pode ser mobilizada para potencializar boas práticas educativas. O audiovisual pode ser pensado enquanto um instrumento de mediação de aprendizagens com a mesma seriedade que o livro, o lápis e a borracha, embora tenha a sua singularidade, potenciais e limitações”, finaliza.