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Tatiana Beltrão *

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completou 18 anos no dia 13 de julho com uma conquista que é, ao mesmo tempo, um imenso desafio: chegar às escolas de Ensino Fundamental de todo o País, passando a integrar de forma efetiva os conteúdos escolares ministrados a mais de 30 milhões de estudantes brasileiros. Uma lei aprovada no ano passado alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), determinando a inclusão obrigatória, no currículo do Ensino Fundamental, de conteúdos que tratem dos direitos das crianças e adolescentes, tendo o ECA como diretriz. A ideia não é criar uma nova disciplina, e sim trabalhar a questão nas disciplinas que já existem, tornando o Estatuto presente no dia-a-dia da escola.

A lei é vista como um avanço por entidades de defesa dos direitos da criança e do adolescente, pois a abordagem na educação poderá ser um instrumento determinante para tornar o Estatuto mais conhecido e mais bem compreendido pela sociedade. Fazer valer a lei, no entanto, impõe desafios que vão desde a dificuldade em mobilizar os gestores públicos para adotarem a medida em seus sistemas de ensino até a falta de conhecimento dos próprios professores sobre o ECA.

De autoria da senadora Patrícia Saboya (PDT-CE), a lei 11.525 entrou em vigor na data de sua publicação, em 25 de setembro de 2007, mas poucas escolas, cidades e estados já trabalham o tema em suas redes. Contudo, ações de abrangência nacional estão em curso para promover a mudança. O Conselho Nacional de Educação (CNE) incluirá a determinação nas diretrizes curriculares nacionais do Ensino Fundamental, que serão revisadas e atualizadas nos próximos três meses por uma comissão especial constituída pelos conselheiros. “Certamente, a abordagem dos conteúdos do ECA no Ensino Fundamental será incluída no próximo parecer do Conselho, assim como a necessidade de inserção do tema nos materiais didáticos”, garante Francisco Cordão, integrante da Câmara de Educação Básica do CNE.

No Ministério da Educação, a questão está sendo desenvolvida no Escola que Protege, programa da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) voltado à formação de educadores para o enfrentamento, no espaço da escola, da violação dos direitos da criança e do adolescente. A atenção à lei 11.525 deverá ser um dos critérios exigidos na seleção dos projetos atendidos pelo programa. Uma resolução tratando do novo desenho do Escola que Protege está em análise no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).

Outras estratégias estão sendo planejadas em conjunto com a Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), e o Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente (Conanda). “Temos pautado o assunto em todas as ações que realizamos junto aos sistemas estaduais e municipais de educação, para informá-los de sua responsabilidade nesta lei. O CNE vai regulamentar e orientar as escolas com seus pareceres, mas os Estados e os municípios, que têm a responsabilidade sobre o Ensino Fundamental, já podem formular seus conteúdos, incluindo os direitos da criança e do adolescente de forma interdisciplinar”, afirma Rosiléa Wille, coordenadora-geral de Direitos Humanos da Secad.

Para Rosiléa, ter uma lei que promova o ECA na escola é uma conquista, pois é uma maneira efetiva de fazer que as crianças e os adolescentes se apropriem do conhecimento sobre seus direitos, além de promover a valorização do Estatuto junto à comunidade escolar – incluindo família e educadores. “O desafio é sensibilizar o profissional da educação, e fazê-lo entender que o ECA é um ganho para a sociedade brasileira. Sabemos que muitos, mesmo professores, ainda vêem o Estatuto apenas como um instrumento criado para proteger adolescente que comete infração”, avalia.

Mudar a percepção dos educadores sobre o ECA também é visto como um desafio pela subsecretária da Criança e do Adolescente da SEDH, Carmen Oliveira. Em parceria com o MEC, o órgão planeja a realização de uma pesquisa, ainda em 2008, sobre o imaginário social dos professores brasileiros em relação ao Estatuto. “Queremos saber quais são os pontos mais problemáticos nesta relação para podermos desenvolver as estratégias que serão adotadas”, diz Carmen.

Um estudo publicado neste ano pelo Instituto da Criança e do Adolescente (ICA), vinculado à Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), comprova que a sensibilização dos professores deve ser um dos primeiros passos para fazer que o ECA se torne mais presente na escola. Realizado em parceria com a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), o projeto Criança e Adolescente Prioridade Absoluta, que deu origem à publicação, atuou, entre outras frentes, na capacitação de professores da rede pública de 13 escolas públicas de Belo Horizonte para trabalharem a questão dos direitos da infância em sala de aula.

“Encontramos resistência de vários professores em relação ao Estatuto, mesmo que eles admitissem que não conheciam o instrumento e que nunca haviam lido a lei. A idéia que prevalecia é de que o ECA teria conferido apenas direitos às crianças e aos adolescentes, numa espécie de ‘pode-tudo’. Os educadores se sentiam ameaçados em sua autoridade”, relata Rita de Cássia Fazzi, diretora do ICA. Ao final do projeto, a maioria havia mudado sua concepção e se mostrava comprometida em incorporar a questão dos direitos no cotidiano escolar, conta a professora.

A capacitação deverá mesmo ser palavra-chave neste processo, e iniciativas na área começam a surgir. Na Bahia, tramita na Assembléia Legislativa um projeto de lei prevendo a criação de programa para capacitar os professores da rede estadual sobre o ECA. A capacitação é necessária para que o corpo docente conheça melhor o Estatuto e possa desenvolver formas de inseri-lo nos currículos como determina a nova lei, justifica a autora da proposição, a deputada Ângela Sousa.

Em alguns municípios, a abordagem do Estatuto nas escolas começou há mais tempo. É o caso de Campo Grande (MS), onde, desde 2005, uma lei municipal estabelece que cada escola deverá tratar dos direitos da criança e do adolescente como um dos itens desenvolvidos nos currículos e projetos. “Se isto não estiver definido no projeto político-pedagógico da escola, ele é devolvido para ser refeito”, garante Ângela de Brito, coordenadora-geral de gestão de políticas educacionais da cidade.

Na Escola Municipal Elísio Ramirez Vieira, na periferia de Campo Grande, o ECA já faz parte do dia-a-dia da comunidade escolar. Os principais artigos do Estatuto são tratados de forma transversal em disciplinas como português, artes ou educação física. Os alunos das turmas do sexto ao nono ano fazem textos e desenhos (já publicaram até um livro de poesias tendo seus direitos como tema), enquanto os pais são convidados a participar de palestras com promotores ou conselheiros tutelares. “A freqüência escolar aumentou por causa desses projetos e conseguimos aproximar a escola das famílias dos alunos”, comemora a orientadora educacional Maria do Socorro Oliveira Belo, que participou de formação do Escola que Protege.

O relato da orientadora resume o objetivo da senadora Patrícia Saboya ao propor a lei. “Acho que precisamos ‘popularizar’, no bom sentido, o ECA. E nada melhor do que começar nas escolas, sensibilizando professores e alunos”, afirma a senadora. Ela explica que, quando os educadores desconhecem o conteúdo do Estatuto, perdem a chance de usar a lei em favor das crianças e dos adolescentes. “Precisamos mudar a rota dessa história, fazendo que professores, diretores, orientadores pedagógicos e as próprias crianças tenham um conhecimento mais aprofundado de uma das leis mais modernas do mundo no que diz respeito à defesa da infância e da adolescência”, completa.

Direitos que se aprendem na escola

Na Escola Marista Irmão Francisco Rivat, de Samambaia (DF), o Estatuto da Criança e do Adolescente não aparece apenas nos cartazes e desenhos colados nas paredes do pátio ou nos trabalhos escolares elaborados pelos alunos da quarta série da instituição. Ele está também nas conversas dos estudantes e, principalmente, em suas atitudes. Depois de estudarem o ECA em quadrinhos do cartunista Ziraldo e em reportagens e materiais elaborados pela professora, os alunos mostram que estão por dentro de seus direitos – e dos deveres, também. “A gente leva para casa tudo o que aprende sobre o Estatuto aqui”, garante Brenda. O colega Felipe conta que já teve que explicar para muita gente o que é o Estatuto.

Após muita conversa sobre direitos e deveres, os meninos e meninas – que têm, em média, entre 10 e 11 anos –, decidiram criar um código de conduta para si próprios em sala de aula. “Eu brigava por nada. Agora vi que não é preciso ser assim, e meus amigos dizem que estou muito mais legal”, conta Célia, colega de Brenda e de Felipe. Outra idéia da turma foi criar “monitores do recreio”: a cada semana, um grupo de alunos assume a responsabilidade de ajudar os educadores a zelar pela paz nos intervalos da aula, intermediando conflitos como disputas por brinquedos ou discussões mais acaloradas.

A partir dos debates sobre o ECA, o pensamento crítico ganhou espaço nas aulas. Os alunos escreveram uma carta ao presidente Lula e sonham em entregá-la pessoalmente. Na carta, reivindicam igualdade de oportunidades para as crianças brasileiras e pedem que o governo invista mais na divulgação do Estatuto, inclusive com materiais que falem a linguagem delas. Um trecho da carta, escrito a mão em letras grandes, ocupa uma das paredes da sala de aula, do teto ao chão. O próximo projeto dos alunos da Rivat é uma rádio, que deve entrar no ar durante os recreios, pelo sistema de alto-falantes do colégio.

A instituição é uma amostra do quanto pode render, em termos de aprendizado e de cidadania, a abordagem do ECA em sala de aula. Quando perguntada sobre como a escola – que fica em uma das cidades-satélites mais empobrecidas dos arredores de Brasília e onde todos os alunos são bolsistas – conseguiu tanta mobilização em torno dos direitos da infância, a professora da turma, Adriana Marla, dá a receita: “Basta força de vontade e querer fazer diferente. Assim os alunos ganham, e a gente também. E assim se constrói um conhecimento.”

* Tatiana Beltrão é Jornalista Amiga da Criança, título concedido pela
Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI) em 2001.

O Estatuto vai à escola
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