Estudos apontam a inteligência cultural como competência essencial para lideranças do século 21 e para redução de desigualdades educacionais
Você já ouviu falar de inteligência cultural? O conceito surgiu nos anos 90 e ganhou destaque nos últimos anos, apontado por especialistas de diversas áreas como uma competência essencial para o século 21. Isso porque num mundo hiperconectado, no qual as fronteiras se estreitam, a capacidade de entender e interagir com outras culturas traz novas perspectivas, fortalece o respeito e a empatia entre as pessoas e potencializa a liderança inclusiva. Na educação, é um instrumento poderoso de promoção da equidade.
Um estudo recente da Universidade de Cingapura publicado no Jornal Internacional de Educação (IJE) destaca que a inteligência cultural é, junto com o letramento digital, uma habilidade essencial para o futuro do trabalho, especialmente em relação a negócios que envolvem internet e tecnologia.
No estudo, os pesquisadores mediram os impactos da aprendizagem de um grupo de estudantes e de professores da universidade que colaboraram em atividades de consultoria de negócios para empresas dos países vizinhos Laos e Indonésia. Os autores concluíram que o aprendizado dos participantes foi potencializado não só pelo contato com iniciativas de transformação digital nas empresas participantes, mas também com trocas entre culturas diferentes.
O que é inteligência cultural?
O simples contato com outra cultura, como quando a gente viaja para outro país ou conhece alguém com costumes diversos, não basta para desenvolver inteligência cultural. Mais do que tomar contato com outras formas de ser e estar no mundo, desenvolver esse tipo de inteligência passa pelo entendimento sobre como a cultura molda comportamentos, valores e crenças, ampliando a capacidade de lidar com a diversidade de pessoas e situações e exercitando respeito, diálogo e empatia.
O estudo da Universidade de Cingapura destaca quatro dimensões interdependentes que compõem a inteligência cultural:
- Comportamental: capacidade de se adaptar e mudar atitudes em relação a pessoas de diferentes culturas;
- Motivacional: desejo e disposição individual para se adaptar em meio às diferenças culturais;
- Cognitiva: conhecimento e experiência de um indivíduo em relação a outras culturas;
- Metacognitiva: capacidade para analisar outras mentalidades, compreender e encontrar soluções para conflitos decorrentes da diversidade cultural.
“É uma competência essencial para pessoas que trabalham em organizações globais e que precisam interagir com gente de outros países, mas também para nós, brasileiros, de forma geral. Nosso país tem dimensões continentais, com diferentes culturas e profundos abismos sociais. Desenvolver nossa inteligência cultural melhora nossas relações sociais de muitas maneiras”, defende Gabriela Agustini, co-diretora executiva da Olabi, organização social que trabalha com diversidade e inclusão na cena de tecnologia.
Liderança inclusiva e futuro do trabalho
No mundo dos negócios, esse tipo de inteligência foi relacionado pela consultoria Deloitte como uma das habilidades fundamentais para gestores do futuro, dentro da perspectiva de empresas conectadas às boas práticas de ESG (sigla em inglês para Ambiental, Social e Governança). Na análise Tendências Globais de Capital Humano 2023, a consultoria destaca a inteligência cultural como um dos traços de lideranças inclusivas.
“Líderes altamente inclusivos são confiantes e eficientes em interações com outras culturas. A capacidade de se sair bem em diferentes contextos culturais vai além de ter um mapa mental das diferentes características de cada cultura. É preciso reconhecer como sua própria cultura impacta em sua visão de mundo, assim como os estereótipos, influenciado até nas expectativas em relação a outras pessoas”, escreve um dos diretores da Deloitte, José Marcos Silva, em artigo que comenta os resultados da análise.
Gabriela, da Olabi, reforça que o entendimento sobre a influência da cultura em nossa vida é indispensável para o reconhecimento de nossos vieses para que, então, a gente possa domá-los. “Ao aumentar a nossa inteligência cultural, vamos cada vez mais percebendo como as nossas escolhas, gostos, preferências, confortos e desconfortos em determinadas situações estão relacionados à cultura. Isso amplia nossa visão de mundo, porque nos ajuda a questionar mais as coisas e a não aceitar narrativas únicas”, diz.
Assim, desenvolver essa competência passa pelo estímulo à curiosidade e diversificação de repertório cultural, como indica a co-diretora da Olabi: “ler livros escritos por mulheres negras ou indígenas, por exemplo, nos coloca em contato com narrativas que questionam um discurso hegemônico branco e eurocêntrico. A gente começa a entender que existem outras narrativas que precisam ser respeitadas e complexifica nosso olhar para as coisas do mundo.”
Inteligência cultural na educação: reduzindo desigualdades
A inteligência cultural foi objeto de estudo do doutorado de Adriana Fernandes Coimbra, professora do curso de pedagogia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Na tese, defendida em 2016, ela associa o conceito à aprendizagem e cataloga uma série de estudos e autores internacionais que defendem que o reconhecimento da inteligência cultural de grupos socialmente vulneráveis potencializa a aprendizagem e reduz desigualdades educacionais.
“A inteligência cultural é um dos princípios da aprendizagem dialógica, conceito introduzido no Brasil pelo grupo de pesquisa Núcleo de Investigação e Ação Social e Educativa (NIASE), da UFSCar, do qual faço parte”, explica Adriana. Desde 2006, ela e o grupo estudam aprendizagem dialógica para concretizar atuações exitosas em diferentes contextos educativos.
“Assumir a inteligência cultural como premissa de aprendizagem significa reconhecer que todas as pessoas são capazes de analisar situações problemáticas e apresentar soluções para sua resolução, engajando-se em ações que conduzam, por exemplo, à redução de desigualdades em um ambiente escolar”, explica Adriana.
Para que isso aconteça, segundo ela,é necessário criar condições ideais de comunicação que consigam promover um diálogo igualitário. Todas as pessoas envolvidas devem ter, independentemente de sua posição social e cultural, espaço para escuta, fala e debate de ideias de forma coletiva.
“Em uma escola, por exemplo, familiares e comunidade do entorno podem apresentar conhecimento tão relevante quanto profissionais da educação, contribuindo para estabelecer prioridades e criar caminhos inéditos para concretizar uma educação libertadora”, exemplifica Adriana.
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