Favelas brasileiras replicam Paraisópolis em modelo de gestão que envolve ações voluntárias da comunidade ajuda a combater a crise sanitária e econômica nas periferias.
Em abril de 2020, cerca de 450 pessoas se reuniram na escadaria em frente ao Palácio do Governo do Estado de São Paulo, no Morumbi. Cartazes se levantavam no ar em um protesto pacífico organizado pela União de Moradores de Paraisópolis, que reivindicava políticas públicas de enfrentamento à pandemia nas favelas brasileiras.
Localizada no bairro vizinho, a favela de Paraisópolis é a segunda maior comunidade de São Paulo. A favela de Paraisópolis tem cerca de 100 mil habitantes e movimenta a economia com 10 mil comércios locais, que empregam cerca de 21% dos moradores. Apesar da potência cultural e das soluções coletivas encontradas pela comunidade, a região enfrenta sérios problemas de infraestrutura, ausência de investimento em saúde pública, espaços culturais e de lazer.
Frente a uma crise sanitária global sem precedentes, com ruas de esgoto a céu aberto, moradias insalubres, dificuldade no acesso à internet e tempo de espera média de 75 dias nas unidades de saúde próximas, a comunidade se viu responsável pelas ações no combate à pandemia. Mesmo não obtendo a resposta desejada durante as reivindicações, os moradores voltaram para a sede do G-10 das Favelas com força de vontade renovada.
O bloco, composto por líderes e empreendedores sociais das 10 maiores favelas do Brasil, criou um movimento chamado Comitê das Favelas. Só na favela de Paraisópolis, a mobilização contou com quase 658 voluntários — entre eles, 85% são mulheres — que dividiram-se em ações múltiplas de mitigação do vírus. A iniciativa em Paraisópolis inspirou outras comunidades e foi replicada em 380 territórios de 14 estados brasileiros.
Favela de Paraisópolis: “Presidentes de rua” em ação
O Comitê das Favelas surgiu antes mesmo da pandemia, em 2019, com o objetivo de fomentar o empreendedorismo local e a economia das favelas. Para responder aos desafios específicos da crise sanitária e econômica, o presidente da União dos Moradores de Paraisópolis, Gilson Rodrigues, decidiu adaptar as ações que já existiam para garantir a segurança e atender as necessidades da população.
A primeira fase foi reunir os negócios sociais e direciona-los para as frentes de combate a Covid-19. O Costurando Sonhos, projeto de fortalecimento do empreendedorismo feminino, focou na produção e distribuição de máscaras, o Mãos de Maria na distribuição de 80 mil cestas básicas, e o LinkedIn das Favelas atuou na conexão de moradores às oportunidades de emprego.
Em um segundo momento, a preocupação foi tranquilizar os moradores e mobilizá-los. Conhecidos como “presidentes de rua”, cada voluntário fica responsável pela orientação de 50 famílias, ajudando a conectá-las com as 12 frentes organizadas para combater a disseminação da Covid-19. Pensando na segurança dos colaboradores, foi determinada uma faixa etária, de 18 a 45 anos, para a participação.
Givanildo Pereira, 20, é empreendedor social e também um dos coordenadores do Comitê das Favelas. “Quando uma grande crise chega, é característico que as pessoas se desesperem e a gente entende isso. Nos primeiros dois meses foi difícil organizar a comunidade. Colocamos carros de som nas ruas, para informar o quão grave eram as consequências da pandemia e como cada um poderia ajudar nesse sentido”, relembra.
Paraisópolis e a potência das favelas
Superados os primeiros desafios, vieram outros. Para manter o modelo de gestão, a iniciativa precisaria de recursos financeiros. Ao contatar empresas, o Comitê descobriu que muitas delas já estavam comprometidas com outras ações. Mesmo assim, abriram as doações e conseguiram arrecadar cerca de quatro milhões de reais em campanhas de crowdfunding.
Com esse recurso, contrataram ambulâncias, capacitaram socorristas, distribuíram 1 milhão de refeições, 100 mil kits de higiene, cartões de auxílio de R$200 e impactaram mais de 32 mil famílias na favela de Paraisópolis. Antes que se dessem conta, o modelo já estava influenciando decisões em outras comunidades.
“Paraisópolis sempre compartilha soluções com outras favelas. Mas com a pandemia, essa relação se intensificou ainda mais. Nosso objetivo ainda é reivindicar melhores condições a partir de políticas públicas, mas essa mobilização mostra que nós, moradores de periferia, podemos mudar a realidade”, acrescenta Givanildo.
O empreendedor social, que nasceu no interior da Paraíba e foi criado pela mãe morando na favela de Paraisópolis desde os dois anos de idade, é um retrato da juventude inquieta que dedica seu projeto de vida a potencializar ainda mais as ações em comunidade.
Ao lado de Flávia Campos (22), Eduardo Castro (27) e Igor Gonçalves (26), faz parte da equipe que, sob a gestão de Gilson Rodrigues, fez a diferença em meio à adversidade. “Se passamos por essa, somos capazes de passar por qualquer coisa juntos. A gente não vai parar por aqui”, conclui.
A 16a edição do prêmio Empreendedor Social, realizado pela Folha de São Paulo em parceria com a Fundação Schwab, adaptou as categorias para reconhecer as ações em resposta à Covid-19. O Comitê das Favelas foi representado por Gilson Rodrigues e premiado na categoria de Mitigação. A mobilização também foi apontada, em junho de 2020, como referência no controle da pandemia em relação ao município de São Paulo.