A plataformização da educação é um fenômeno que já está em vigor. Quais são os desafios impostos por esta realidade?
A partir de março de 2020, com o início da pandemia de Covid-19, escolas, alunos e professores brasileiros foram obrigados a se adaptar ao ensino à distância, até então pouco utilizado no país. Para fazer a intermediação deste processo de aprendizagem virtual, foram adotadas plataformas tecnológicas estrangeiras, em um fenômeno conhecido como “plataformização da educação”.
Os dados reforçam essa realidade: em 2019, a pesquisa TIC Educação mostrou que apenas 14% das escolas públicas utilizavam alguma plataforma de ensino a distância em suas atividades. Já no relatório do ano seguinte, realizado durante o fechamento das escolas, plataformas de videoconferência como Google Meet, Zoom ou Microsoft Teams já eram usadas por 80% das escolas estaduais.
Quais são os desafios que este cenário traz? Como os dados e as produções de estudantes e educadores são armazenados, utilizados e compartilhados nos ambientes virtuais?
Panorama da plataformização da educação no Brasil
Buscando responder a essas e outras questões, o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) está lançando uma série de estudos para analisar as preocupações e providências relacionadas ao armazenamento dos dados de usuários das plataformas utilizadas no ensino. A pesquisa também realiza um panorama sobre as tecnologias adotadas por secretarias estaduais e municipais de todas as capitais e de cidades brasileiras com mais de 500 mil habitantes durante os primeiros 18 meses da crise sanitária.
Dessa forma, quase a totalidade das escolas pesquisadas buscou soluções tecnológicas ofertadas por empresas privadas – sobretudo estrangeiras. Para ter acesso a esses serviços – sendo alguns de maneira gratuita -, as redes de ensino aceitaram os termos e as condições propostas por companhias de grande porte, como Google e Microsoft.
O Comitê Gestor da Internet no Brasil é responsável por estabelecer diretrizes estratégicas relacionadas ao uso e desenvolvimento da Internet no Brasil. A organização coordena e integra todas as iniciativas de serviços de internet no país, promovendo a qualidade técnica, a inovação e a disseminação dos serviços ofertados.
Plataformização da educação: falta uma estrutura nacional
Um dos pesquisadores do estudo, Rafael Evangelista, conselheiro do CGI.br e coordenador do Grupo de Trabalho Plataformas Educacionais, aponta que a situação de emergência imposta pela pandemia acelerou o processo de substituição das infraestruturas digitais próprias das redes de ensino pelos sistemas das grandes companhias do setor, conhecidas como Big Techs.
“O estudo tem a preocupação de acompanhar esse processo. Encontramos uma situação muito caótica, pouco coordenada nacionalmente, com secretarias diferentes tomando soluções de maneira independente”, observa Evangelista, que também é pesquisador do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Para ele, a falta de uma estrutura nacional que orientasse o uso de infraestruturas comuns para realizar a educação remota foi crucial para a entrada das Big Techs. “Não dá para condenar os professores que, diante da pandemia, foram pressionados a continuar dando aula. Assim, ele usa todos os recursos que tem à mão, como WhatsApp, Zoom, o que for mais fácil. Só que ele faz isso porque não existe nenhum planejamento, nenhuma orientação sobre o que fazer.”
Crescimento das edtechs
O estudo reúne informações que revelam um forte crescimento recente do mercado dedicado a explorar a tecnologia digital como ferramenta para a educação no Brasil. De acordo com mapeamentos do Centro de Inovação para a Educação Brasileira (CIEB) e da Associação Brasileira de Startups (ABStartups), divulgados em 2019, haviam 449 edtechs ativas no Brasil, sendo que 70,6% ofereciam soluções para o Ensino Básico. Já na edição de 2020, este número subiu 26%, chegando a um total de 566 edtechs.
Evangelista afirma que, entre as redes de ensino pesquisadas, não foram encontrados indícios de criação própria de softwares e códigos de plataformas educacionais, muito menos um controle consistente sobre a política de dados. “E por que isso é relevante? Esses dados são objetos de lucro das Big Techs. Vários dos acordos entre secretarias e empresas assumiram uma dita ‘não onerosidade’, que seria dizer que aquele parceiro não está gastando nada para utilizar aquela solução. Porém, essa gratuidade não existe. O que existe é um interesse, de quem oferece a solução, nos dados que vão estar sendo transferidos nesses softwares, para que a partir deles sejam operados os seus modelos de negócio.”
Governança da educação digital
O terceiro volume do estudo, a ser lançado no primeiro trimestre de 2023, reunirá possibilidades de soluções e sugestões de políticas para guiar essa plataformização da educação. “Esse processo não pode vulnerabilizar alunos nem escolas, pois seus dados estão sendo o tempo inteiro lidos pelas plataformas, que depois usam essas informações para produzir anúncios direcionados a crianças e adolescentes. Queremos ajudar na elaboração de uma governança da educação digital”, define Evangelista.
Trata-se de um desafio global que, em um país da dimensão do Brasil, deve ser solucionado de maneira integrada e distribuída regionalmente, otimizando recursos e permitindo o desenvolvimento nacional de softwares de políticas educacionais. “Pensamos em uma governança da educação digital que seja multissetorial, que seja feita em cooperação com os professores e gestores, com quem entende e quem pesquisa sobre educação a distância”, pondera. “Esse processo é uma transformação muito importante. Eu gosto muito de uma expressão que fala em ‘virada cibernética’. Então, o que é a educação diante dessa virada cibernética?”, finaliza o pesquisador.
Confira o estudo “Educação em um cenário de plataformização e de economia dos dados” na íntegra (parte 1 e parte 2).