O projeto “Pretos que voam”, iniciativa do Coletivo Quilombo Aéreo, vai formar a primeira turma de comissários de voo e visa aumentar essa representatividade
Quantos comissários de voo negros você conhece? Ao se deparar com essa falta de representatividade, Kênia Aquino, comissária de voo há 13 anos, e Laiara Amorim, piloto em formação, colocaram na pista o projeto “Pretos que voam”, com o objetivo de trazer mais jovens negros para posições de destaque na aviação civil, a partir de um programa de bolsa de estudos. A iniciativa faz parte de uma das ações do Coletivo Quilombo Aéreo, grupo de apoio a profissionais negros na aviação civil.
“Em vários momentos das nossas jornadas, éramos as únicas pessoas negras dentro do avião, não víamos nossos pares. Surgiu a necessidade de questionar esse ambiente e entender quais os caminhos podemos construir para outros como nós”, diz Kênia.
Para grande parte dessa população, viajar de avião é um luxo e uma realidade distante, e atuar como profissional na área é quase impensável. De acordo com elas, a formação tem alto custo, o que faz com que os jovens negros nem cogitem carreiras como piloto ou comissário. Além da falta de orçamento, as posições também exigem conhecimento em idiomas o que também desmotiva as pessoas.
A primeira turma do projeto começou em março, em Porto Alegre, e a formatura está prevista para 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. Ao todo, foram 1.600 inscritos, e doze selecionados para participar do programa com a bolsa integral e da mentoria, com o objetivo preparar o grupo para o cenário que devem encontrar no campo da aviação civil.
“Para se inscrever, os participantes tinham que ter mais de 18 anos, ensino médio completo, se autodeclarar negro e morar na periferia. Dessa forma, chegamos nesse grupo de selecionados para receber toda formação”, explica Laiara.
A iniciativa cobre os valores do curso completo de comissário de voo, as provas na Agência de Aviação Civil (ANAC), um curso de línguas estrangeiras e os uniformes para os doze jovens negros e está disponível, por enquanto, apenas na capital gaúcha. Kênia e Laiara também oferecem encontros para debater o racismo na aviação civil.
O projeto acontece por meio de financiamento coletivo do Matchfunding Enfrente, da Benfeitoria, plataforma de mobilização de recursos para projetos de impacto social, econômico, entre outros. A partir da mobilização de recursos do próprio coletivo e do apoio deste Edital da Enfrente, foi arrecadado o valor de R$100.000 para as bolsas de estudos. A primeira edição foi disponibilizada para moradores da capital gaúcha, mas já está nos planos da dupla uma nova rodada de vaquinha para abrir mais uma turma voltada para pessoas de outros estados.
Preparo para decolar
Andrieli da Rosa Martins, 20 anos, é uma das alunas que entrou no programa. Ela nunca tinha considerado ser comissária, e não era por falta de vontade. “Uma amiga perguntou se me interessaria pela profissão, fui atrás e sinto que me encontrei”, diz a moça.
“Ser comissária não cabia nos meus planos nem na minha conta bancária. Quando a oportunidade surgiu diante de mim, já previ meu futuro na aviação e acredito ter tomado a melhor decisão da minha vida. Vou dar o melhor de mim para que esse novo sonho se realize.”
Para ela, participar do curso também é resistir. “Temos que ocupar todos os lugares ditos como inacessíveis para negros. É de suma importância iniciativas como essa.”
Dhionatan Nascimento, 20 anos, nunca viajou de avião. Ao ver as experiências de uma amiga, que é comissária, se encantou pela profissão. Com medo de não conseguir um emprego na área, nunca pensou ir atrás.
“Tinha muito medo da rejeição e do preconceito. Muitos amigos que viajam não viam pessoas negras trabalhando nos aviões. Minha amiga falou do projeto não só para seguir carreira, mas também para melhorar minha autoestima.”
Coletivo Quilombo Aéreo
A ideia de criar um coletivo começou também com Kênia e Laiara, nas redes sociais, com o perfil @voonegro, em 2018. A proposta, na época, era reunir profissionais atuantes no mercado da aviação civil para dividirem experiências, oferecer apoio psicológico e esclarecimentos para o combate do racismo dentro das empresas de aviação. Hoje são 45 profissionais da área dispostos a ajudar.
Para Laiara, o número reduzido de profissionais nas redes sociais já indicava como a categoria está defasada na inclusão dos negros. Em 2019, o coletivo fez um levantamento e viram que apenas 5% dos comissários de voo no mercado de trabalho são negros. No quadro de pilotos da aviação civil, o percentual é ainda menor, somente 2% são pretos. Segundo Laiara, o cenário pode mudar com mais incentivo e acesso das populações periféricas às áreas.
“A pandemia piorou a situação. Muitas pessoas foram demitidas, incluindo integrantes do grupo. Mudamos nosso foco para procurar oportunidades de trabalho para realocá-los”, explica.
“A gente dá o suporte possível. O que é isso senão um Quilombo que cuida dos seus? Só que dessa vez era a gente se aquilombando no céu.”