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Crédito: Joilson Kariri/Flickr

Carolina Pezzoni, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz

“Porque eu chorava por dentro. Por dentro eu chorava lágrimas frias e muitas, porque eu queria chorar um século se preciso, mas não ali naquela hora diante daquele homem que dizia ser meu pai. Eu sentia amargura e dor e ódio – ódio por meu pai, ódio por minha mãe, ódio por meu avô, por meu irmão, por mim mesmo – ódio, só ódio, um ódio que tinha gosto amargo e duro e que me fechava o peito, calava minha voz, me sufocava e me dava vontade de morrer…”

Extraído do conto “Naquele tempo”, de autoria do jornalista, escritor e editor Luiz Fernando Emediato, o trecho acima se refere a uma criança de 5 anos que acaba de ser agredida física e moralmente pelo pai, e se revolta contra todas as pessoas que presenciaram a situação sem impedir a violência.

“Isso mostra que a mente da criança recebe influência direta da violência, trazendo pensamentos que não são próprios de um ser humano saudável”, observa Rafaela Dotti Chioquetta, autora do artigo “Violência doméstica contra crianças e adolescentes: o berço do crime”, que analisa a influência da violência doméstica na formação psíquica e de personalidade da criança e do adolescente.

Além disso, “a vítima carrega consigo um sentimento próprio da situação, tanto na hora em que ela acontece como ao longo do tempo”, esclarece a pesquisadora, aluna do curso de Direito da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Foz do Iguaçu). Por isso, as formas de manifestar esse impacto são as mais variadas: vão desde o sentimento de raiva, de medo em relação ao agressor, até um quadro de dificuldades escolares, problemas de confiança com outras pessoas, autoritarismo e delinquência.

“Os impactos causados pela violação, tanto física, quanto moral e sexual se fazem presentes para sempre na vida do indivíduo”, afirma Rafaela. Entre os exemplos mencionados no artigo, os mais explícitos são os casos históricos dos ditadores Stalin (1879-1953), violentado por seus pais quando criança, e Hitler (1889-1945), barbaramente espancado pelo pai, ambos até hoje lembrados por seus regimes autoritários, abusos de força e extrema violência contra a sociedade.

Embora exista um padrão, diz Rafaela, é preciso ter cuidado ao afirmar que a violência doméstica pode ser um fator decisivo na formação da personalidade criminosa. “O que se sabe é que a violência é um fator que afeta diretamente a saúde psíquica de qualquer vítima, independentemente de qualquer outro fator, quanto mais de uma criança, analisando o espaço no qual ela vivencia tudo isso, que é o seio familiar, a base para suas futuras relações sociais com o mundo.”

Em entrevista ao Promenino sobre o tema do seu artigo, publicado na revista Levs, do Laboratório de Estudos da Violência e Segurança da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Rafaela comenta alguns desdobramentos da violência doméstica contra crianças e adolescentes na sociedade brasileira e de que formas ela pode ser superada.

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Promenino: O que motivou a sua pesquisa?
Rafaela: Este é um tema que tem de ser abordado, porque é um problema social muito grande e ainda falta bibliografia a respeito. A gente percebe que, apesar de a família ter mais responsabilidade com a infância, a violência doméstica aumenta tanto no Brasil como no resto do mundo. E isso prejudica a formação da criança e do adolescente, tanto por ser considerado pela vítima uma prática não abusiva, quanto por ter fixado nela um sentimento negativo, que futuramente ela poderá expressar em condutas antissociais, prejudicando não apenas a vítima, mas o meio em que ela está inserida.

Promenino: Como se explica a conexão entre a violência doméstica na infância e a formação de uma mente criminosa?
Rafaela: Por estarem em uma fase de desenvolvimento, de criação de quem serão na vida adulta, tudo o que a criança e o adolescente passam na infância e na adolescência fica marcado, principalmente na formação do seu caráter e personalidade. É por isso que a violência doméstica pode se manifestar negativamente quando forem adultos, no ambiente em que estiverem inseridos.

Promenino: Isso determina a formação de uma mente criminosa?
Rafaela: É muito relativo afirmar que a violência doméstica é um fator decisivo na formação de uma personalidade criminosa. Mas, podemos dizer que influencia diretamente na maneira de pensar, agir, sentir e demonstrar de qualquer pessoa. E, independentemente de qualquer outro fator, afeta a saúde psíquica da vítima, quanto mais de uma criança, analisando o espaço no qual ela vive tudo isso. A violência doméstica pode ser um fator passivo, mas devemos considerar que também pode ser um fator dominante, condenando uma criança a passar sua vida com marcas indesejadas, definindo o seu caráter e a fazendo assumir um papel que, provavelmente, se estivesse em outro âmbito social, não seria natural dela.

Promenino: O fato de os dados sobre o assunto serem inexatos dificulta o diagnóstico?
Rafaela: Sim. A violência doméstica apresenta cada vez mais casos denunciados às autoridades, mas esse fato não se dá pelo aumento de casos da violência em si, mas pelo aumento da movimentação social em prol da criança e do adolescente. Segundo dados do Disque Denúncia, divulgados pelo CRAMI [Centro Regional de Atenção aos Maus Tratos na Infância], o número de denúncias em 2012 (mais de 130 mil ligações) subiu 58% em relação a 2011 (mais de 82 mil). A forma mais notificada é a negligência, denunciando algo que existe por trás da sociedade brasileira, que é o descaso com a vida e sua fase mais importante. Ainda assim, todos os tipos de violência doméstica são pouco notificados.

Promenino: Quais são as razões para isso?
Rafaela: Justamente devido à omissão das vítimas, que se dá por diversos fatores, principalmente o medo do agressor. Na maior parte dos casos, a violência sexual, por exemplo, não é relatada pelas crianças e adolescentes. O silêncio prevalece. A criança não denuncia porque não tem consciência e muitas vezes porque acredita que é má e, portanto, precisa ser castigada. Os pais às vezes também acham natural e correto e não veem isso como uma forma criminosa. Quando se criam leis que interferem nisso, como foi o caso da Lei da Palmada, alguns pais que praticam a violência doméstica veem esse tipo de medida como uma intervenção estatal, e equivocada, na família. Então, a gente não consegue ter um dado exato de quantas crianças sofrem com isso hoje.

Promenino: Isso pode ser revertido?
Rafaela: É preciso levar em conta primeiro que a criança poderá ou não manifestar isso quando for adulta. Mas vai depender de cada caso, do estado psicológico de cada criança, se ela foi tratada ou não, depende do meio em que estiver inserida também. Pode ser ou não um meio que a violência é vista apenas como uma suposta forma de correção, em que a criança não percebe isso de uma forma negativa. O teórico norte-americano Ralph Welsh ouviu relatos de adolescentes que tinham cometido algum tipo de delito e notou que eles eram convencidos de que haviam sofrido violência na infância porque eram maus e seus pais só fizeram isso para a sua correção. Se continuavam maus, era porque seus pais não haviam corrigido com maior uso da força. Nesse sentido, a violência pode ser facilmente disseminada, pois os comportamentos da família são vistos como necessários e normais para a criação de um ser humano correto.

Promenino: Como essa questão é abordada pelo Direito?
Rafaela: Na verdade, a questão da proteção da criança e do adolescente tem de ser trabalhada de forma interdisciplinar. O direito cria as leis que certificam a proteção e as sanções contra quem comete a violência. Mas essa nunca será a única disciplina envolvida. A todo o momento há pessoas sendo moldadas pela sociedade, então é preciso haver um trabalho conjunto, que compreenda a análise pedagógica, o acompanhamento psicológico, etc. Um problema muito grande é não ter a denúncia, porque ficamos de mãos atadas.

Quais os impactos da violência doméstica na mente das crianças e dos adolescentes?
Quais os impactos da violência doméstica na mente das crianças e dos adolescentes?