Além de ampliar habilidades sociais para a vida em sociedade, essas relações na infância fortalecem a saúde e a confiança
Quem tem um amigo tem tudo. Além de dar nome a uma das músicas do premiado álbum AmarElo, do rapper Emicida, a afirmação que retrata por meio da arte um aspecto tão fundamental da vida, também encontra embasamento na ciência. Segundo a Organização Mundial da Saúde, promover relações de amizade na infância é de importância fundamental para um bom desenvolvimento e qualidade de vida no futuro.
A recomendação é universal, e está diretamente ligada à sobrevivência. “O ser humano é um ser social por natureza. Estar em grupo é o que nos permite sobreviver quando nascemos e, posteriormente, entrar em contato com nossas maiores fontes de felicidade”, explica Jéssica Stadler, psicóloga e especialista em análise comportamental e desenvolvimento infantil.
Sendo a família a primeira ponte das crianças com um ambiente social, a escola vem em segundo momento para ampliar a visão de mundo e expandir as possibilidades de interação com o outro. Para além da formação de vínculos afetivos, as relações sociais com indivíduos fora do círculo familiar ajudam a preparar as crianças para a vida em sociedade.
“Fazer amizades, em si, já é uma habilidade bastante complexa, que permite exercitar muitas outras. Ter um repertório de comunicação, expressão emocional e assertividade compatíveis com a idade pode permitir à criança o desenvolvimento da sensação de pertencimento e de um papel social que vão contribuir diretamente nas relações da vida adulta”, acrescenta a especialista.
Recomendação universal
Um amigo representa uma fonte de carinho, cuidado e segurança. E isso vale para múltiplas realidades na infância. Há oito anos trabalhando com crianças e adolescentes que apresentam transtornos do neurodesenvolvimento, como autismo e Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), Jéssica Stadler afirma que quando há um vínculo afetivo estabelecido com outra criança, o processo de desenvolvimento é facilitado. “É o que chamamos na psicologia comportamental de reforçador positivo”, complementa.
O que é amizade para João Guilherme?
Com 8 anos de idade, Gui criou um canal no YouTube, onde dá dicas de brincadeiras para passar o tempo durante a quarentena. Os vídeos também mostram sua rotina com os amigos, à distância. O que mais gosta de fazer é reuni-los para jogar Roblox.
Construindo vínculos de longe
Se para os adultos reaprender a construir e manter vínculos a distância despertou a sensação de insegurança durante a pandemia, para as crianças em fase de formação de repertório emocional, o período de isolamento trouxe consequências ainda mais graves para o desenvolvimento.
Foi o caso de Vitor, 7 anos, que começou a apresentar sintomas de ansiedade e comportamentos regressivos para a idade. “Ele chorava, mas não sabia explicar o porquê. Quando perguntávamos, dizia que estava se sentindo sozinho. O contato com os amiguinhos da escola ficava restrito às aulas remotas, que aconteciam só duas vezes por semana”, relata a mãe, Aline de Noronha.
Sem a possibilidade de se reunir com os primos e amigos próximos, Vitor acabou encontrando nos jogos on-line — Free Fire é o seu favorito — um momento para dialogar com outras crianças. A psicóloga Jéssica Stadler acrescenta que esses tipos de interações virtuais cumprem um papel importante para amenizar os efeitos do distanciamento social, mas não substituem as interações presenciais.
“O processo de construção de vínculos se inicia quando observamos as expressões faciais do outro, seus comportamentos e gostos, e assim passamos a compreender limites, solucionar conflitos, expor pontos de vista e construir nossa identidade. Estar fora da escola e perder a convivência presencial com os amigos, priva as crianças do desenvolvimento de muitas dessas habilidades socioemocionais”, conclui.
A força de um grupo
A divisão de um banquinho em um recreio chuvoso de 2019 marcou para sempre a vida de Helena, Beatriz, Isabela e Milena que, desse dia em diante, formaram um grupo inseparável. Hoje, quase dois anos depois, as meninas lembram do dia com saudades do tempo em que podiam estar juntas presencialmente.
“Sinto falta de dividir o lanche com elas, de abraçar, de brincar. A gente quer muito que isso tudo passe logo para poder ir uma na casa da outra e voltar para a escola”, compartilha Helena, 9 anos, que já faz planos para uma festa do pijama pós-pandemia.
Para incentivar o contato do quarteto durante o período de distanciamento, os pais formaram um grupo no WhatsApp e disponibilizaram esse espaço para que as meninas mandassem áudios e fizessem chamadas de vídeo. Não demorou até que os encontros passassem a acontecer pela plataforma digital Google Meets, a mesma que usam para as aulas remotas.
Milena, 9, explica como ela e as amigas fazem para brincar de esconde-esconde à distância.
“A gente é bem criativa. Já brincamos de boneca, jogamos jogos de tabuleiro, criamos historinhas e até mesmo tentamos um esconde-esconde virtual”, conta Isabela, também com 9 anos. “Não é a mesma coisa de estar junto pessoalmente, mas a gente percebeu que esse tempo descobrindo brincadeiras ajuda a fazer a pandemia menos pior.”
Isabela, 9, conta o que é amizade para ela.
Mas nem tudo é tão simples quando se trata de manter a comunicação on-line. Beatriz, 9 anos, compartilha que depender do telefone celular dos pais e das mensagens escritas pode dificultar a interação. “Ao vivo é mais fácil entender o que as amigas querem dizer e por mensagem muitas vezes a gente entende errado e fica chateada.”
Ainda assim, a percepção dos pais é muito positiva em relação à capacidade de resiliência das meninas. “Acredito que um ambiente acolhedor favorece o aprendizado, e percebi que o contato com as amigas, mesmo através das telas, ajudou a Milena entender melhor esse período difícil de processar”, observa a mãe da Milena, Regiane Herchcovitch, que também é psicóloga de formação.
Dica: O papel dos pais e responsáveis no incentivo das relações de amizade em ambientes seguros é fundamental. “A forma como as crianças encaram os desafios, inclusive os impostos pela pandemia, sofre influência direta de como sua família enfrenta esses mesmos desafios”, alerta a psicóloga Jessica Stadler.