Ler escritores negros é conhecer a história brasileira por outra perspectiva. Veja por que a literatura contribui para uma educação antirracista e confira projetos que valorizam esses autores.
O Brasil conta com uma tradição de autoras e autores negros já consolidada. A primeira mulher a publicar um romance no Brasil era negra e nordestina. Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, e escreveu “Úrsula” ,em 1859, com o pseudônimo de “uma maranhense”. O livro se transformou em um instrumento de crítica por meio da humanização de personagens escravizados.
No entanto, uma pesquisa desenvolvida pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea – coletivo de pesquisadores vinculado a Universidade de Brasília (UNB) -, mostra que entre 2004 e 2014, apenas 2,5% dos autores publicados não eram brancos – podendo ser negros ou de outras raças. No mesmo recorte temporal, só 6,9% dos personagens retratados nos romances eram negros, sendo que só 4,5% eram protagonistas da história.
Os dados mostram que autores negros e, principalmente, as autoras negras, acabam esquecidos na produção literária brasileira. A escritora mineira Carolina Maria de Jesus, por exemplo, vendeu mais de 10 mil exemplares do livro Quarto de despejo: diário de uma favelada na primeira semana de seu lançamento, em 1960, mas ainda permanece desconhecida para muitos.
“Carolina Maria de Jesus é contemporânea da Clarice Lispector. O Quarto de Despejo foi lançado no mesmo período em que a Clarice estava em plena produção literária. Quando a gente pergunta para as pessoas quem já leu Carolina ninguém conhece ou nunca ouviu falar. Agora, quando a gente pergunta da Clarice, todo mundo já leu. Por que isso acontece?”, provoca a jornalista e graduada em Letras, Juliane Sousa.
Juliane, ao lado da técnica em biblioteconomia Carine Souza, também é criadora do projeto Mulheres Negras na Biblioteca, que promove roda de conversa, oficinas de caderno, rodas de poemas e clubes de leituras.
Mulheres Negras na Biblioteca
O projeto surgiu em 2016, quando a idealizadora Carine Souza, ao lado de colegas do curso de Biblioteconomia, notaram a ausência de obras literárias de autoras negras na biblioteca da escola técnica em que estudavam em São Paulo. As alunas resolveram angariar livros por meio das redes sociais e promoveram uma campanha de incentivo à leitura dessas obras.
Durante a pesquisa para desenvolverem o Trabalho de Conclusão de Curso, “A importância da inclusão de obras autoras negras nos acervos das bibliotecas públicas municipais de São Paulo“, as estudantes se depararam com a escassez de obras de autoras negras nas bibliotecas públicas da cidade. A partir disso, o grupo tirou do papel o projeto Mulheres Negras na Biblioteca.
O foco passou a ser o desenvolvimento de ações que pudessem contribuir para a formação e aumento de leitores de obras de autoras negras, fazendo com que isso chegasse às bibliotecas.
“Nós poderíamos somente ter cobrado às instituições. Mas resolvemos nos movimentar para fazer este projeto acontecer. A gente não fica esperando as instituições tomarem alguma decisão. Nós cobramos, nos movimentamos e formamos as pessoas”, pontua Carine.
Juliane Sousa ratifica que é essencial o trabalho de “corpo a corpo”. “Sabendo que vivemos em um país com urgências como moradia, saneamento básico, e alimentação. A literatura não é a urgência da vez. Então, a gente entende que precisamos ir até às pessoas, através de atividades como o clube de leitura”, conta. Em parceria com o Sesc Ipiranga, por exemplo, elas criaram a webserie “Quantas autoras negras você já leu?”.
“Uma coisa muito significativa que a gente faz é levar a autora para dentro da biblioteca. Pra gente isso é muito simbólico, porque a obra daquela mulher não está naquele espaço. Promovemos uma atividade, fazemos a leitura da obra, e discutimos. No final deixamos uma obra da autora por lá”, compartilha Juliane Sousa.
As idealizadoras contam que as atividades, que no momento estão paralisadas por conta da pandemia, conseguem formar um público leitor no geral, e não só um público leitor de autoras negras. “O livro da autora negra pode ser a porta de entrada para gente que nunca leu um livro na vida”, acredita Juliane.
Juliane explica que devido à pandemia, as atividades presenciais foram paralisadas, mas os conteúdos continuam sendo transmitidos a distância, o que tem permitido a participação de pessoas de outros estados. “A nossa prioridade são os encontros presenciais, mas tivemos que nos adaptar. Pela primeira vez, em três anos de projeto, nós investimos em atividades online”, conta.
Bibliotecas, literatura e uma educação antirracista
Isaac Palma Brandão é sociólogo, antropólogo e autor do livro Desarquivar: o racismo no caso Rafael Braga. Ele, no entanto, só foi ler o seu primeiro romance aos 19 anos. “Por muito tempo, os livros foram algo inacessível para mim. Era caro ter um livro e meu acesso era por meio das bibliotecas”.
A importância das bibliotecas no processo educacional é descrita em um manifesto da UNESCO com a IFLA (Federação Internacional de Associações de Bibliotecários e Bibliotecas). “A biblioteca escolar proporciona informação e ideias fundamentais para sermos bem sucedidos na sociedade atual, baseada na informação e no conhecimento”, enfatiza o manifesto.
Vale a pena conferir! A Netflix divulgou a série Histórias que importam na plataforma. São 12 episódios de cinco minutos, em que celebridades negras fazem a leitura de livros infantis de autores negros.
Juliane comenta que nos livros de autoras negras os personagens (brancos ou negros) aparecem com a sua humanidade e isto colabora com uma educação antirracista. “A literatura dessas mulheres reivindica a humanidade de pessoas negras. E isso constrói outro imaginário para pessoas negras na nossa sociedade”.
Isaac também percebeu, durante a faculdade de sociologia, a ausência dos pesquisadores negros. “Na biblioteca da universidade eu encontrei um livro do Alberto Guerreiro Ramos, um sociólogo brasileiro negro. Eu li o livro depois que terminei a graduação e fiquei com raiva de terem me roubado a possibilidade de não ter tido acesso à perspectiva dele antes”, afirma.
Projetos de incentivo à literatura negra
Além do Mulheres Negras na Biblioteca, conheça outros projetos que incentivam ou se propõem a dar visibilidade à autores negros e negras pelo país.
Literafro
O Portal da Literatura Afro Brasileira apresenta autores e autoras negras, artigos, resenhas, fala sobre teatro (grupos e dramaturgos), ensaístas e ainda dá notícias do que acontece no mundo da cultura literária negra. O projeto nasceu do trabalho do Grupo de Interinstitucional de Pesquisa Afrodescendências na Literatura Brasileira da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Livraria Bantu
A Livraria Bantu, em Belo Horizonte, é um espaço dedicado à produção literária de origem africana e afro descendente. Na Livraria Bantu tem nomes como Conceição Evaristo e Carolina Maria de Jesus, Lima Barreto, Lázaro Ramos, Bento Balói e a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie.
Preta Poeta
O projeto Preta Poeta busca incentivar a produção poética, a declamação e a difusão da literatura negra feminina. Regularmente, convida coletivos, faz roda de leitura, sarau, feira de literatura e palestras.
Margens
O projeto Margens atua na valorização das mulheres na literatura marginal, periférica, saraus e slams no Brasil. É resultado da pesquisa de mestrado feita pela jornalista Jéssica Balbino, entre 2014 e 2016 na Unicamp, e valoriza a participação das mulheres na literatura. Para difusão de conteúdo, ela criou o blog Margens, e fez o documentário Pelas Margens.
Dicas para começar!
Confira abaixo algumas sugestões de autoras negras de nossas entrevistadas. Caso queira mais indicações de livros, na página do Facebook do projeto Mulheres Negras na Biblioteca há uma lista com 50 nomes de autoras negras para conhecer.
• Série Cadernos Negros
• A cor da ternura – Geni Guimarães
• Cartas para a minha mãe – Teresa Cárdenas
• Dia bonito pra chover – Lívia Natália
• Maréia – Miriam Alves
• Quando me descobri negra – Bianca Santana
• Tecendo memórias e histórias – Marli de Fátima Aguiar