Saiba como trazer para a sala de aula a obra da escritora que fez história por meio da literatura e da luta por igualdade
“Comigo o mundo vai modificar-se. Não gosto de como ele é”, escreveu Carolina Maria de Jesus (1914-1977), consciente do poder que suas narrativas tinham de impactar e transformar. Mulher negra e periférica, perseguiu o sonho de ser escritora e fez história por meio da literatura e da luta por espaço em uma sociedade desigual.
Embora o mundo tenha mudado desde a década de 1960, quando a autora se revelou, a realidade descrita em seus diários autoficcionais ainda reflete o Brasil atual. “Não é uma obra de ontem, é de hoje. Os quartos de despejo, multiplicados, estão transbordando”, apontou o jornalista Audálio Dantas, na décima edição do livro mais famoso de Carolina.
Intitulado Quarto de Despejo: o Diário de uma Favelada, o livro abriu os olhos do mundo para a realidade das favelas brasileiras, mas também denunciou o preconceito racial e de gênero fora das páginas. Apesar de ter vendido 1 milhão de exemplares, traduzidos em 14 idiomas e repercutido em mais de 40 países, a autora foi desacreditada pela crítica literária da época.
Catadora de papel e mãe solteira, Carolina quebrou todos os paradigmas e acreditou em si mesma. Além dos 4 livros publicados em vida, deixou 6 livros póstumos, 5 mil páginas de manuscritos, peças teatrais, composições musicais, poemas e contos.
O sucesso que tornou Carolina Maria de Jesus um fenômeno midiático se deve em grande parte à literatura autoficcional, que mergulhou na diversidade sociocultural brasileira. Carregados de dramaturgia, os diários da escritora foram considerados tragicamente poéticos.
“Carolina não é simples porque não entrega uma resposta única. Ela vai escrever textos como alguém que está interpretando o país a partir de um ponto de vista, sem nunca esquecer de buscar soluções para os marginalizados dessa sociedade”, acrescenta Raffaella Fernandez, doutora em Teoria e História da Literatura.
“A figura e a obra dela foram consumidas à exaustão, mas mesmo assim ela morreu pobre e esquecida. Carolina é um exemplo de existência pós-abolição, cercada pelo mesmo racismo estrutural que, até hoje, desconsidera as subjetividades de ser e estar no mundo”, reflete a pesquisadora, integrante do comitê editorial que irá republicar as obras de Carolina Maria de Jesus pela editora Companhia das Letras.
Infância e Juventude
Carolina Maria de Jesus nasceu no dia 14 de março de 1914 na cidade de Sacramento, interior de Minas Gerais (MG). Neta de um homem escravizado, foi a primeira da família a ler e frequentar a escola. Teve acesso à educação formal apenas por dois anos, mas foi o suficiente para despertar sua paixão pela leitura e pela escrita. Aos 23 anos, após a morte da mãe, migrou para São Paulo em busca de melhores condições de vida.
Rua A, barraco nº9
Começou a trabalhar como faxineira, mas tudo mudou quando engravidou do primeiro filho e foi expulsa da casa em que trabalhava. Foi então que partiu para a região do Canindé, uma das primeiras favelas da cidade. Lá, passou a coletar papel para sustentar o barraco nº9, construído por ela mesma na Rua A. Durante o período, Carolina se formou como artista, escrevendo em cadernos usados e lendo livros descartados no lixo.
O sonho de ser escritora
Além da rotina e da interação turbulenta com os vizinhos, um dos principais personagens de seus diários era a fome. Já com cerca de 40 anos, Carolina escrevia também sobre o sonho de ser lida e sair da favela. Já havia tentado a imprensa, em 1940, mas não obteve sucesso. Até que seu caminho cruzou com o de Audálio Dantas, um jornalista que fazia uma reportagem no Canindé. Em 1958, o jovem repórter levou os 20 cadernos e fez uma matéria sobre a escritora no jornal Folha da Noite. Dois anos depois, o livro “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada'' foi publicado.
Da fome à fama
Não demorou até que a narrativa despertasse interesse na sociedade brasileira da época. Quarto de Despejo quebrou recordes no mercado editorial, alcançando tiragem inicial de 10 mil exemplares. Ainda assim, a crítica literária brasileira chegou a acusá-la de ser uma invenção do jornalista Audálio Dantas. Apesar do descrédito, Carolina tornou-se um fenômeno midiático, viajando pelo Brasil e pelo mundo para promover o lançamento do livro, que vendeu mais de 1 milhão de exemplares.
A vida na casa de alvenaria
Com as vendas, arrecadou o suficiente para mudar-se do Canindé para Santana, um bairro de classe média na Zona Norte da capital paulista. Em seu segundo livro, “Casa de Alvenaria: Diário de uma ex-favelada” (1961), teceu análises ainda mais profundas sobre o racismo e o machismo, dessa vez centrados no contexto social da burguesia. Ao distanciar-se do cotidiano das favelas, as vendas e o interesse do mercado editorial caíram.
Literata acima de tudo
Provérbios (1963) e Pedaços da Fome (1963). Embora tenha sido orientada a desistir da carreira como escritora, Carolina ainda queria reafirmar sua posição na literatura. Sendo assim, autofinanciou o lançamento dos próximos dois livros: Provérbios (1963) e Pedaços da Fome (1963). Enquanto as obras eram vendidas dentro e fora do Brasil, o dinheiro que a autora recebia das editoras não foi suficiente para custear uma vida confortável. Em 1969, comprou um terreno em Parelheiros, extremo sul de São Paulo. Voltou a trabalhar como catadora de papel, plantou e vendeu alimentos produzidos no sítio, mas nunca deixou de escrever.
Legado
Carolina Maria de Jesus morreu em 1977, aos 62 anos, vítima de uma crise de insuficiência respiratória. Criou três filhos, decidiu não se casar, revolucionou o mercado editorial e conquistou o mundo como intérprete da sociedade brasileira. Em vida, não desfrutou de todo o reconhecimento por seu trabalho, mas hoje é tida como uma das maiores literatas negras da América Latina. Em 2021, a Universidade do Rio de Janeiro concedeu o título de Doutora Honoris Causa à escritora.
Filha de Carolina Maria de Jesus fala sobre o legado da mãe
Mais do que escritora de diários, Carolina Maria de Jesus foi uma artista. “Ela tinha uma verdadeira compulsão pela escrita”, conta Vera Eunice de Jesus, que lembra da mãe colocando as mãos na cabeça, tirando um lápis do bolso e procurando por qualquer papel para aliviar os pensamentos. “Tenho que escrever agora, ela dizia”.
Apaixonada pelos romances, pela música e pelo teatro, trouxe para suas obras reflexões sobre a ocupação dos territórios brasileiros, o papel sociocultural das mulheres e a potência dos saberes afrocentrados. Professora de Língua Portuguesa da rede pública estadual de São Paulo, Vera Eunice não deixa de relacionar a trajetória pessoal da mãe à educação.
“Carolina foi uma mulher que recebeu muitos nãos, mas nunca desistiu de seus sonhos. Ela tinha consciência de que se tornou uma escritora mundialmente famosa devido àquele um ano e meio que passou na escola. Por isso, a principal mensagem dela para as crianças e jovens é: não deixe de estudar e nem de sonhar”, acrescenta a educadora.
Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os brasileiros
Desde 25 de setembro de 2021, o Instituto Moreira Salles exibe, em São Paulo, uma mostra que traz facetas pouco conhecidas da vida e da obra de Carolina Maria de Jesus. Resultado de quase dois anos de pesquisa, a exposição, que vai até 30 de janeiro de 2022, reúne aproximadamente 300 itens entre fotografias, manuscritos, vídeos e material documental. A ideia é percorrer a produção literária de Carolina e romper com os estereótipos associados à escritora.
A entrada é gratuita, mas o agendamento tem de ser feito pelo site do IMS.
Como trabalhar as obras em sala de aula?
Na educação, as possibilidades de trabalhar a obra de Carolina Maria de Jesus são múltiplas. Desde Projeto de Vida até Literatura, as temáticas abordadas pela escritora permitem um trabalho multidisciplinar. “Os jovens sentem-se representados pelo texto e mobilizados pela trajetória de Carolina, que os incentiva a serem críticos e propositivos”, complementa Raffaella Fernandez.
Com a ajuda da pesquisadora e da educadora Vera Eunice, separamos algumas sugestões para trabalhar as obras de Carolina Maria de Jesus em sala de aula.
Um dos roteiros de estudo disponibilizado pela plataforma Escola Digital, da Fundação Telefônica Vivo, se dedica ao debate das identidades de mulheres negras presentes na obra de Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo. O paralelo entre as duas escritoras traz reflexões sobre literatura e consciência racial. Acesse gratuitamente aqui!
● Projeto de Vida: Biografia de Carolina
O ponto de partida para dialogar com a obra de Carolina em sala de aula é conhecer sua biografia. Dessa forma, os estudantes têm a chance de compreender melhor os aspectos da trajetória pessoal refletidos nos textos da escritora. Uma recomendação é trazer a HQ Carolina, escrita por Sirlene Barbosa e João Pinheiro. A biografia em quadrinhos é especialmente voltada para o público infanto-juvenil.
● Literatura: Escrevendo em primeira pessoa
Por que não estudar gêneros literários escrevendo um diário? Os educadores podem propor a leitura coletiva dos livros de Carolina, convidando a turma a analisar as estruturas usadas por ela. Em uma segunda etapa, os estudantes exercitam a escrita em primeira pessoa. “Isso faz com que se reconheçam e se apropriem da leitura e da escrita”, complementa Raffaella Fernandez.
● História: Contexto do Brasil no século XX
Desde o nascimento de Carolina até o período em que se revelou como escritora, o Brasil do século XX passou por profundas transformações políticas e sociais. Analisar o contexto histórico sob a perspectiva das trajetórias afro-brasileiras pode ser um caminho para entender as implicações práticas dos fatos históricos nas diferentes camadas sociais.
● Geografia: Formação sociocultural das favelas
Em Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, Carolina Maria de Jesus descreve a vida na favela do Canindé. Mas como e por que essa estrutura urbana surgiu? Que parcela da população vivia lá? Essas e outras questões podem ser levantadas sob o ponto de vista geopolítico, traçando paralelos entre a ocupação dos territórios brasileiros no passado e no presente.
● Sociologia: As consequências práticas do racismo estrutural
Ao passar pela biografia, pelo contexto histórico e pelas características literárias de Carolina Maria de Jesus, é possível analisar um aspecto comum: o racismo estrutural. Compreender as consequências práticas na vida e na obra da escritora também é uma oportunidade de projetar um futuro e uma educação antirracista.
Para saber mais sobre Carolina Maria de Jesus
Documentário | Carolina → Dirigido pelo cineasta Jeferson De, o documentário premiado conta a trajetória de Carolina Maria de Jesus, interpretada pela atriz Zezé Motta. Construído a partir dos trechos do livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, o curta-metragem é uma combinação de material documental e dramaturgia. Disponível no Vimeo.
Podcast | Negro da Semana – Carolina Maria de Jesus → Apresentado pelo escritor e roteirista Alê Santos, o podcast se dedica a reunir as histórias de personalidades negras nacionais e internacionais. O primeiro episódio da segunda temporada reúne trechos de áudio e músicas para contar a história de Carolina. Disponível no Spotify.
Música | Quarto de Despejo: Carolina Maria de Jesus Cantando suas Composições → O álbum reúne 12 canções compostas e gravadas pela escritora, que mostra toda a sua versatilidade como artista. Dentre as mais famosas estão “Vedete de Favela” e “O Pobre e o Rico”. Produzido pela gravadora RCA Victor, o álbum está disponível no YouTube.