Professor critica o modelo de aula que não valoriza a reflexão e a construção coletiva de conhecimento, defende a inclusão de lógica de programação desde a educação básica e fala da importância da cultura dos games.
Sílvio Meira (67) é um dos pensadores mais importantes do Brasil sobre o tema educação, inovação e empreendedorismo. PhD em computação pela University of Kent at Canterbury (Reino Unido) e professor associado da escola de Direito da FGV do Rio de Janeiro, também é fundador do Porto Digital de Recife, um dos principais polos de desenvolvimento tecnológico digital do país. Bem como criador da escola de inovação Cesar School.
Nesta entrevista, ele diz que a escola precisa repensar o seu papel na sociedade da informação. Também afirma que durante a pandemia o que se tentou foi “enfiar a aula tradicional no Zoom ou no [Google] Meet”, mas não se buscou criar nada que transformasse de verdade a forma de ensinar. Para Sílvio, o professor precisa entender com a lógica dos games, que o aluno deseja ser protagonista do seu aprendizado, e não mero recebedor de informação.
Fundação Telefônica Vivo – Professor Sílvio Meira, como você percebe a escola, em especial a escola pública, dentro da sociedade da informação?
Sílvio Meira – Olha o papel potencial [da escola] é gigantesco, porque, obviamente, como a vasta maioria das pessoas está matriculada na escola pública, devia ser lá que nós todos encontraríamos o lugar onde, não só as práticas associadas à sociedade e a economia da informação, mas as fundações para desenvolver essas práticas seriam criadas, seriam disseminadas, seriam experimentadas, mesmo depois de sair da escola.
Infelizmente não é isso que acontece. A escola, na realidade do sistema educacional como um todo, talvez tenha sido um dos últimos recantos da sociedade a entender a profundidade das mudanças que estão acontecendo. Bem como a entender o porquê elas estão acontecendo e a urgência de preparar as pessoas para esses movimentos.
No entanto, isso não é novidade do ponto de vista da escola estruturalmente. Ela há milênios passou a ser uma espécie de repositório de disseminação de conhecimentos, de processos, de métodos e de técnicas codificadas no passado. A escola passou a ser um mecanismo de replicação do passado. De preparar as pessoas para o passado.
O grande problema da escola é que ela tem que se refundar continuamente. Precisa se perguntar também continuamente qual é o papel dela no momento: é replicar alguma coisa que a gente sabe fazer muito bem? Certamente é, mas também é descobrir o que que a gente não está sabendo fazer, aprender isso que a gente não está sabendo fazer e começar a fazer de uma forma completamente diferente.
Do jeito que a gente está fazendo hoje, a escola está sempre atrasada. O resultado disso é um baixíssimo engajamento, uma baixíssima vontade de ir para a escola e uma baixíssima vontade de participar do que está acontecendo lá, porque as pessoas têm um mínimo senso de realidade e elas conseguem perceber que não é na escola que elas estão se preparando para essa sociedade de agora.
Fundação Telefônica Vivo – Você usa bastante o termo apocalipse digital para falar do período pandêmico. Que transformações esse apocalipse promoveu na educação? Essas transformações são reversíveis agora que a pandemia de covid-19 está em um momento de maior controle?
Sílvio Meira – Do ponto de vista da escola, na minha opinião, não aconteceu nada. O que a escola fez foi pegar um processo, que está falido, que é a aula. O que é a aula? A aula é uma autoridade, pelo menos em sintaxe, do conhecimento que vai para a frente da sala e diz a sua verdade para os alunos. O projeto da escola é que os alunos repitam aquela verdade, que de resto está codificada no livro de forma não reflexível, pois a maioria das perguntas da escola precisam ser respondidas como está no livro, não é estimulado que se descubra novas formas de fazer. Além disso, quem responder como está no livro será remunerado, do ponto de vista de reconhecimento e recompensas com notas, exatamente por repetir a verdade estabelecida, e não por construir conhecimento pessoal ou coletivo.
Aí você pegou essa sala de aula, a sala não é nem o problema exatamente, o problema é a aula, esse processo não reflexivo de transmissão e recepção de conhecimento, transmissão e recepção de informação, pois conhecimento não se transfere. Então, se tentou enfiar essa aula no Zoom, no Meet, ou em qualquer coisa assim, e ela não cabe lá.
Assim, tudo ficou muito pior, porque você deixou de ter a presença física dos seus colegas. Ou seja, você tentou transpor para o digital um processo que, na minha opinião, está completamente falido que é a aula. E a gente precisa aprender como romper com esse processo. Isso vai ser muito duro, porque são séculos em que os professores aprenderam e foram treinados para enfiar informação na cabeça dos alunos. Tem milhões de mecanismos para fazer tal coisa. No entanto, a gente já deveria ter transformado isso, há muito tempo, num processo de descoberta onde o professor ao invés de replicar a informação, ele desenha processos de construção de conhecimento coletivo. Um modelo que tem o professor como um desenhista de processos de aprendizado e de aprendizado em grupo. Isso não é nenhuma novidade, está em John Dewey, Experience and Education, de 1938; depois está em Paulo Freire, nas décadas de 50, 60 e 70. Só que a gente não fez e não faz, e o Apocalipse é justamente esse: caiu uma bomba digital em cima do processo educacional, e nós não tínhamos feito nada. Como nós não fizemos nada, o sistema entrou em colapso.
O resultado disso, todos nós conhecemos: As avaliações mostram que, mesmo os alunos que estavam conectados desde o começo da pandemia, tiveram queda significativa de performance, caiu significativamente o nível de engajamento, caiu significativamente a atenção. Caiu porque os sistemas educacionais não vinham se preparando para isso. Os professores não estavam preparados. Os alunos estavam preparados para isso, mas não tiveram uma oferta de experiências digitais compatível com o seu domínio das ferramentas e habilidades computacionais, que todos eles já usam há muito tempo para fazer coisas e que não tem nada a ver com a escola.
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Fundação Telefônica Vivo – Você utiliza o conceito de figital para falar da articulação entre os espaços físicos e digitais. Como formar professores capazes de formar estudantes capazes de se moverem num cenário figital?
Sílvio Meira – Se a gente pensar bem, todos os professores que estão saindo do processo de formação hoje são nativos digitais. A internet como conhecemos hoje tem 27 anos, ela chegou em 1995. Então, um professor, que hoje tenha cerca de 25 anos de idade, foi educado a conversar o dia todo no WhatsApp; sabe usar e fabricar imagens extremamente elaboradas usando o Instagram; provavelmente joga nem que sejam jogos casuais nos seu smartphone, assim por diante. Ou seja, eles têm familiaridade com um conjunto de entendimentos digitais. Então, do ponto de vista pelo menos ingênuo e informal, mais ao mesmo tempo prático, os professores que estão se formando hoje e que vão se formar daqui até o fim da década, têm competências digitais e vão usar as ferramentas e os instrumentos digitais, os ambientes e as plataformas digitais. Isso significa que, em tese, esse problema estaria resolvido. Falta nesse processo a gente entender como usar o digital como fundação, como acessório, como componente do processo de ensino e aprendizagem.
Importante entender que isso não passa por você tentar empenar o digital para que ele sirva como cápsula ou embalagem para velhos processos educacionais. Tentar, por exemplo, forçar os processos pedagógicos que foram pensados para uma sala de aula: um professor expõe, os alunos ouvem e repetem. Dentro do digital, os alunos estão acostumados a jogar, como agente de primeira grandeza, um jogo digital, onde eles são os protagonistas. Replicando a aula tradicional em uma plataforma digital, você não vai conseguir capturar a atenção dos alunos, que é o maior problema do ambiente de aprendizado no mundo inteiro hoje. É importante o professor aprender com a cultura dos games, que é parte relevante da cultura digital como um todo. Não apenas usar o jogo para ilustrar a aula, mas o processo de jogar ser ao mesmo tempo um processo de ensinar e aprender.
Fundação Telefônica Vivo – Professor Sílvio Meira, numa sociedade digitalizada, você acredita que linguagem de programação e lógica de programação deveriam fazer parte do currículo da educação básica?
Sílvio Meira – Eu tenho certeza absoluta de que pensamento algorítmico e algum conjunto de ferramentas ingênuas de programação certamente deveriam fazer parte do processo de aprendizado lá. Eu não iria para lá ensinar Phyton, por exemplo, mas certamente o entendimento básico de como programar usando uma linguagem visual e fácil de entender, como o Scratch.
O que é programar alguma coisa? O que é um algoritmo? O que está por trás de objetos que cada vez mais elas começam a usar? As pessoas vão ter que entender por que elas estão fazendo aquilo ali, e isso vai demandar um conhecimento de lógica e de lógica temporal. Ou seja, porque certas coisas têm que ser feitas antes de outras; e lógica temporal é programação, não tem como evitar. Se você vai aprender a prática da lógica temporal é programação de computadores. É óbvio que ninguém vai ensinar Arquitetura Von Neumann e os problemas associados aos Teoremas da Incompletude. Ninguém precisa saber disso, da mesma forma que você não ensina princípios fundamentais do Big Bang até você estar da metade para o fim de um bom curso de graduação em física.
O que a gente precisa saber nesse estágio é como manipular certos constructos que estão associados a ações muito básicas de linguagem de programação: fazer uma coisa, depois fazer outra e aí fazer um teste para ver se faz uma coisa A ou B depois de fazer as duas primeiras. Da mesma forma que lá atrás a gente botou matemática no currículo do ensino fundamental: a partir do final da Idade Média era fundamental saber somar e subtrair numa era em que passou a ter moeda corrente em todo canto, e você tinha que aprender a passar troco, tinha que aprender a fazer tabelas e assim por diante. A partir desse período, todo o mundo educado deveria aprender matemática, não existia sequer a discussão de se era ou não necessário. O mesmo acontece agora na era da informação, na economia do conhecimento habilitado por plataformas digitais em absolutamente todo canto. Nessa realidade, você não pode deixar de ter conhecimento computacional para entender o que é que está acontecendo. Não precisa saber construir, assim como não tem muita gente fazendo teorema de matemática, mas você precisa saber como certas coisas básicas funcionam.