Primeira mulher a ter pós-doutorado em física no Brasil, Sônia Guimarães fala sobre sua trajetória e defende que o futuro da ciência é ancestral e africano
“Tem um ditado africano que diz que uma mulher puxa a outra e as duas puxam uma aldeia”, conta a física Sônia Guimarães ao celebrar as mulheres que estão no topo da lista dos aprovados em 2023 naquele que é considerado o vestibular mais difícil do Brasil, do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA). Nesses trinta anos em que leciona no instituto de soluções tecnológicas aeroespaciais, Sônia acompanhou de perto a transição de um espaço antes ocupado somente por homens brancos e de família rica. Ela foi a primeira mulher negra a pisar no campus, em 1993. Mulheres só seriam admitidas no curso três anos depois.
“Ano passado ingressaram dez meninas, uma delas com a melhor nota do vestibular. Neste ano foram nove meninas, uma delas em primeiro lugar e outra em terceiro. Mesmo com toda adversidade, elas estão chegando e não adianta segurá-las”, comemora Sônia, que, com sua força e trajetória de vida, ajudou a pavimentar o caminho para que mais meninas e mulheres ocupassem lugar de destaque nas ciências.
Nascida e criada em São Paulo, foi a primeira da família a ter diploma de ensino superior. O pai a incentivava a ser a melhor nos estudos. A mãe queria que ela conquistasse todos os seus sonhos e dava suporte material e apoio psicológico para isso. E, assim, Sônia desbrava o campo das exatas.
Sônia Guimarães e o lugar da mulher negra
Acostumada a ser pioneira, Sônia concluiu a faculdade de física nos anos 1970. Lutando contra o racismo de muitas formas, ela se especializou em semicondutores, área que possibilitou o desenvolvimento da tecnologia para celulares. Em 1989, foi a primeira brasileira a ter doutorado em física, título conquistado na Universidade de Manchester, na Inglaterra. De volta ao Brasil, decidiu assumir a vocação de ser professora.
Além de cientista, pesquisadora e professora, Sônia é também inventora, presidente da Comissão de Justiça, Equidade, Diversidade e Inclusão da Sociedade Brasileira de Física e integrante do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial da Cidade de São José dos Campos (SP).
Aos 66 anos, é ativista antirracista e feminista, integrando coletivos que lutam pela inclusão de mulheres negras em espaços de liderança, como a ONG Afrobras e o coletivo Avanço do Brasil Negro. “Nós queremos aumentar o número de mulheres negras na política e no poder. Nós precisamos de mulheres negras não só nas ciências, mas como presidentes residente da República, senadoras, deputadas, prefeitas. A nossa próxima meta é essa.”
Para celebrar o Dia Internacional de Mulheres e Meninas na Ciência, conversamos com Sônia para conhecer um pouco mais sobre sua trajetória profissional e sua luta para que mais mulheres e meninas sejam cientistas. Confira a seguir:
Dia Internacional de Mulheres e Meninas na Ciência
Comemorada em 11 de fevereiro, a data foi instituída em 2015 pela Assembleia das Nações Unidas e passou a integrar o calendário de eventos da ONU em 2019. Sob a liderança da Unesco e da ONU Mulheres, o evento acontece em diversos países, com atividades que visam dar visibilidade ao papel e às contribuições fundamentais das mulheres nas áreas de pesquisa científica e tecnológica.
1. Você é especializada em semicondutores, matéria-prima para chips de celulares e outros dispositivos eletrônicos. Poderia detalhar o tema da sua pesquisa?
Sônia Guimarães: Hoje estou dedicada ao ensino, mas estudei os semicondutores no mestrado, no Instituto de Física e Química da Universidade de São Paulo, e no doutorado, realizado no Instituto de Ciência e Tecnologia da Universidade de Manchester, na Inglaterra. Semicondutores são uma classe de materiais extremamente moldáveis e que conduzem correntes elétricas.
No mestrado, montei um equipamento para melhorar a eficiência de semicondutores que recebem luz do sol e a transformam em energia elétrica. Já no doutorado, trabalhei para fazer com que os dispositivos microeletrônicos fabricados com semicondutores fossem o mais finos e eficientes possível. Naquela época, os celulares eram enormes e meu trabalho era voltado para tornar esses dispositivos compactos, como são hoje em dia.
2. Por que você decidiu trabalhar com física e tecnologia?
Sônia Guimarães: Desde pequenininha, eu era muito curiosa e cheia de perguntas. Minha avó me chamava de xereta e andava de saco cheio de eu fazer perguntas que ela não sabia responder. Mas ser xereta, ser curiosa é a base da ciência. Aprendi a ler e escrever aos quatro anos. Nessa época, minha mãe comprou duas enciclopédias e me incentivou a buscar ali as respostas para minhas questões. Foi aí que comecei a fazer pesquisa.
Eu sempre gostei de matemática. No nível médio, fiz curso técnico em edificações no Liceu de Artes e Ofício de São Paulo e decidi cursar engenharia civil na universidade. Durante o cursinho, descobri que gostava mesmo é de física. Acabei me graduando em física pela Universidade Federal de São Carlos. No 2º ano de curso, eu me apaixonei pelos semicondutores, que lá nos anos 1970 já eram a promessa de ser a base do nosso desenvolvimento tecnológico. E foram mesmo.
3. Diferentemente de você, a maioria dos estudantes torce o nariz para exatas. Por que isso acontece?
Sônia Guimarães: São dois grandes problemas. O primeiro é relacionado à formação de professores. Usando a física como exemplo, somente 27% dos professores de física do ensino médio são graduados nesse curso. Ou seja, quem sabe física está dando aula nas universidades ou nos institutos federais, não na educação básica. Como é que a gente ensina física para alguém sem ter o conhecimento em física?
O segundo problema está ligado ao gênero. As meninas escutam, a vida toda, que entendem menos de matemática e de ciências. De tanto escutar, acabam internalizando. Existe um desestímulo imenso para que meninas pensem que exatas não são para elas.
3. Mas isso está mudando, especialmente pela inspiração e pelo trabalho de mulheres como você, certo?
Sônia Guimarães: Sem dúvida. Ano passado, recebi uma ligação de uma menina que queria me conhecer pessoalmente. Ela viu uma palestra em que eu dizia que as meninas podem e devem ocupar os lugares que elas quiserem. Depois disso, estudou e passou no ITA. Hoje, ela está no segundo ano de curso.
Com as cotas raciais, as coisas começaram a mudar ainda mais. Tem um ditado africano que diz que uma mulher puxa a outra e as duas puxam uma aldeia. Cada mulher negra que chega no topo abre caminho para muitas outras. E aos poucos vamos avançando. Existia um tempo em que a mulher não podia votar. E hoje estamos reconhecendo que os países que apresentaram melhores resultados no combate à pandemia foram aqueles liderados por mulheres.
4. Você está acostumada a ocupar espaços nos quais a maioria dos corpos são brancos. Como o racismo afetou sua trajetória?
Sônia Guimarães: Eu tive uma família que me deu condições materiais para estudar e me incentivou a perseguir meus sonhos. Meu pai me cobrava para estudar muito e ser a melhor da classe. Minha mãe, que era empresária bem-sucedida, me dizia que eu poderia fazer o que quisesse e me dava dinheiro para que eu conseguisse estudar fora da minha cidade natal. Se em casa eu tinha apoio, fora o que eu mais ouvia é que eu não era inteligente o suficiente.
Eu me lembro, por exemplo, de quando estava no ginásio e me passaram para a turma da tarde só porque uma garota branca queria entrar na sala e não tinha mais vaga. Fiquei muito triste, porque os melhores alunos estavam de manhã. Minha mãe me disse: “Seu cérebro vai com você aonde você for”. Naquele ano, estudei muito e fui a primeira aluna de todo o colégio.
Tive também uma professora que me dizia que eu nunca iria aprender física. Na graduação, pedi uma bolsa de iniciação científica e foi negada. Eles disseram que eu não iria usar física para nada e que não podiam desperdiçar a bolsa comigo. Como resultado, terminei o curso com a segunda melhor nota. Quer dizer, alguma coisa eu devo ter aprendido, não?
6. Cada vez que uma porta era fechada para você, você corria atrás para abrir outra. É preciso muita força para isso, não?
Sônia Guimarães: Isso mesmo. Toda vez que eu ouvia um não, estudava e mostrava para eles tudo o que eu podia aprender e fazer. Logo no meu início de docência no ITA, alguns alunos da turma de 1º ano, que tinham acabado de entrar no curso, me avaliaram como “a pior professora de todos os tempos”. Disseram que eu não sabia nada de física e que minha roupa chamava muita atenção para meu corpo. Como resultado, fui expulsa da instituição por mais de dez anos.
E foi aí que entrei para o Instituto Aeronáutica e Espaço (IEA) e inventei uma técnica para obter sensores de radiação infravermelha. Agora sou inventora, além de cientista. Ano passado, ganhei o prêmio Professor Emérito – Troféu Guerreiro da Educação Ruy Mesquita. Esse prêmio existe há mais de vinte anos e nunca um professor do ITA havia ganhado. Só quatro mulheres já ganharam e eu sou a única mulher negra a ser agraciada com ele. Nada mal para “a pior professora de todos os tempos”, né?
7. Você costuma dizer que o futuro da ciência é ancestral e africano. Pode explicar melhor?
Sônia Guimarães: Todas as ciências vieram da África. A primeira universidade do mundo é em Timboktu, na África. Até hoje, com toda a tecnologia que temos, ninguém sabe direito como as pirâmides do Egito foram construídas. Enquanto na Europa medieval jogavam dejetos no rio, em vários lugares da África já existia sistema de esgoto e água potável há dez mil anos. Isso tudo é tecnologia, engenharia ou o nome que você quiser.
Há seis mil anos, os africanos já usavam códigos que eles chamavam de Ifás e que deram início a todos os algoritmos, códigos e softwares que usamos na computação hoje. Isso tudo é coisa de preto, veio lá da África. Os povos dogons, da África Central, já conheciam o céu. Eles tinham conhecimento de um satélite que só foi conhecido pelo ocidente cem anos depois, com o telescópio Hubble. Isso é ciência, gente!
E são muitos os exemplos. O ferro exige muita tecnologia para ser manipulado e os africanos já manipulavam esse metal muito antes dos europeus. As pessoas africanas que foram escravizadas e trazidas para cá já conheciam tecnologia de agricultura e mineração. Os egípcios sabiam operar cérebro, olhos, fazer cesárea há muitos anos. Isso é África, isso é coisa de preto, isso é antes dos europeus invadirem e fazerem a palhaçada que fazem até hoje. O futuro da ciência é ancestral.