De toda a produção científica realizada pelas universidades brasileiras, somente 15% de quem a produz são pesquisadores negros – sendo 3% de mulheres pretas
Desde pequena, Viviane Alves sonhava em ser cientista. De origem humilde e criada por pais de adoção, a garota percorreu sua trajetória escolar na educação pública até conseguir passar no vestibular da PUC-MG. “Mas não tinha dinheiro para pagar”, conta ela. Então, entrou na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e, durante a graduação, deparou-se com diversas situações de racismo. “Quem é negro sabe como é”, lamenta Viviane, que superou os obstáculos estruturais impostos a uma mulher de pele escura e hoje simboliza a concretização de seu próprio desejo de infância: é uma das poucas pesquisadoras negras do Brasil.
Afinal, de toda a produção científica realizada pelas universidades do país, somente 15% de quem a produz são pessoas negras, segundo dados do Censo da Educação Superior de 2020. Ainda mais sub-representada neste índice estão as mulheres pretas e pardas, que são apenas 3% dos cientistas brasileiros, ao passo que representam 28% da população geral, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Pretos e pardos na pesquisa científica: sub-representados
Hoje, Viviane é professora do departamento de Microbiologia da UFMG, além de diretora de Divulgação Científica da universidade. “Sou a única professora negra do departamento. E ouço quase diariamente, de diversos estudantes, que sou a única professora preta que eles têm”, denuncia.
“Quando olhamos para pessoas negras na ciência, é uma representação bem pequena e isso é um claro reflexo de como era a política de entrada e manutenção de estudantes nas universidades brasileiras antes de termos a Lei de Cotas, que garantiram maior representatividade. Apesar de os negros serem maioria no país, poucos conseguem concluir o ensino superior e isso se afunila ainda mais na pós-graduação”, acredita Viviane, que também é uma das fundadoras da Liga Brasileira de Ciência Preta, organização criada em 2020 com a intenção de aumentar a representatividade dos jovens pesquisadores/as negros/as.
Para ela, há uma série de fatores – incluindo o racismo estrutural – que excluem essas pessoas do mundo acadêmico. “Ocorre em uma frequência muito baixa uma pessoa negra como pesquisadora e docente universitária, principalmente por conta das dificuldades da população negra, e especialmente da mulher negra.”
Reflexos da desigualdade racial na educação brasileira
Existem diversos dados e pesquisas que mostram como a desigualdade racial se reflete no cenário da educação brasileira. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) de 2019, por exemplo, mostra que 71,7% dos jovens fora da escola são negros. O mesmo estudo demonstra que 3,6% das pessoas brancas de 15 anos ou mais eram analfabetas, enquanto esse percentual chega a 8,9% entre as pessoas negras.
“O Brasil é um país racista, e isso é um impedimento de ascensão social, pois o racismo potencializa as desigualdades”, acusa Delton Aparecido Felipe, pesquisador da escola de Direito da FGV-SP e diretor da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN). “E no Brasil os corpos negros vivenciam o racismo ao longo das suas vidas. Para se formar mais pesquisadores negros, é preciso que haja igualdade na trajetória escolar, impedida pelo racismo. Se isso já é percebido quando olhamos para a educação básica – que é obrigatória –, quando olhamos o ensino superior – que nao é obrigatório – há maior impedimento ainda para negros e negras”, observa Delton.
Essa desigualdade racial, como ele aponta, atinge a universidade brasileira. Ainda de acordo com a PNAD 2019, considerando a faixa etária entre 18 e 24 anos, pessoas brancas têm duas vezes mais chances de estarem na universidade ou de já terem concluído o ensino superior, em comparação com pretos e pardos.
Ampliação de ações afirmativas e Lei de Cotas
Para transformar essa realidade, ambos os pesquisadores negros defendem uma ampliação das ações afirmativas na universidade, entre elas a Lei de Cotas – que está prestes a ser revisada. “Há um desafio na implementação desta lei”, relembra Delton. “Da forma como a política foi adotada, as universidades federais deixaram de oferecer 70 mil vagas para a população negra. Também não existe obrigatoriedade de cotas para negros na pós-graduação, e esse é o espaço da pesquisa no Brasil. Isso afeta diretamente o número de cientistas negros”, avalia.
Ele ressalta que a proposta de diversos movimentos negros, entre eles a ABPN, é de um aprimoramento da Lei de Cotas, extendendo-a ao acesso à pós-graduação. Viviane também reforça a importância de ações afirmativas que apoiem na manutenção das pessoas pretas nas universidades. “Não basta entrar. A pessoa negra precisa se manter, ter acesso a moradia universitária, alimentação gratuita, livros e materiais, participação em eventos e congressos. É importante que, além das cotas, haja esse acolhimento de estudantes pretos nas mais diferentes áreas de ensino e extensão”, complementa.
Benefícios de uma ciência diversificada
E, no fim das contas, qual o impacto que a redução da desigualdade racial traria para a produção científica do Brasil?
“Um dos principais elementos da produção de conhecimento é melhorar a vida das pessoas, que ajude no progresso e no desenvolvimento do Brasil”, defende Delton. “Se o país é diverso e tem realidades diversas, como podemos produzir uma ciência que não leve em consideração a realidade da população brasileira?”, questiona. “Em geral, as pessoas acreditam que ações afirmativas somente beneficiam os sujeitos dessa política. Porém, é preciso entender que esse benefício vai muito além do sujeito em si, se estendendo para a própria ciência e, consequentemente, para a sociedade como um todo.”