Crédito: Lazyllama/Shutterstock
Por Cecília Garcia, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz
O diâmetro do confete tem quase a mesma circunferência das digitais do menino; com os dedos ele segura a bandeja onde vende balas e chiclete. Enquanto as luzes transpassam pelo suor dos jogadores de futebol, elas não alcançam as ruas que cercam o estádio, onde as garotas são exploradas sexualmente. As obras das estradas que levam os torcedores ávidos e amantes de músicas aos shows, foram construídas com concreto, aço e desesperança. Por trás da euforia e comoção dos grandes eventos que acontecem no Brasil, existe um quadro de exploração infantil que se favorece do ecossistema criado por eles.
Sob holofotes, ainda assim invisível:
a pesquisa sobre o efeito de grandes eventos em crianças e adolescentes
Quando a universidade Brunel University London se propôs a estudar os impactos da realização de grandes eventos nos índices de exploração infantil, deparou-se com a falta de material bibliográfico consistente sobre o tema. A identificação de dados factíveis sobre o tema já é complexa nas situações corriqueiras, que dirá em grandes eventos, onde elas estão mais reclusas e naturalizadas.
Durante a feitura da pesquisa, foi sugerido: cenários sociais que levam a exploração – como desemprego, pobreza, desigualdade de gênero ou deslocamento forçado – durante os eventos se interconectam e se potencializam com as condições locais onde eles acontecem. Na Copa Mundial da FIFA de 2010, na África do Sul, a desigualdade econômica, o afrouxamento de vistos e a pouca experiência em sediar eventos de grande porte seriam fatores que facilitariam a exploração.
Para os pesquisadores responsáveis, tornou-se muito claro que durante grandes eventos “os riscos surgem em todos os níveis – individual, familiar, comunidade e sociedade. Esses riscos resultam de uma associação de fatores sociais, econômicos, culturais, ambientais e estruturais que podem tirar o poder das crianças e enfraquecer seu ambiente de proteção”. Nasce, então, a pesquisa Exploração de Crianças e Adolescentes e a Copa do Mundo, publicada em 2013 e traduzida pela Childhood Brasil. O apanhado de informações traz dados sobre riscos em grandes eventos, seus desdobramentos tangíveis e os diretos na proteção da criança e do adolescente.
Os perigos elencados pela pesquisa, referência em estratégias de combate à exploração infantil em outros projetos internacionais, inclusive no Brasil, são: ritmo acelerado de construção, com a chegada de um contingente alto de homens separados de suas famílias, o que pode estimular a exploração sexual; alta demanda de trabalhos temporários; migração de trabalhos homens para obras de infraestrutura; descolamento de crianças dos seus lares para locais temporários e desconhecidos; extensão de férias escolares ou suspensão de dias letivos – por conta dos jogos – sem supervisão ou programação especial; coerção sobre crianças para atividades ilegais, como venda de drogas e roubo; níveis elevados de abuso sexual e físico por conta do aumento de atividades festivais e efeitos negativos na saúde física e mental das crianças, causadas por doenças contagiosas, caso sejam abusadas ou forçadas a usar drogas.
Dentro do aspecto do trabalho infantil, a pesquisa aponta que os casos são mais associados aos grandes eventos esportivos, e incluem incidentes de envolvimento na produção de arquivos esportivos, na construção de estádios e coação de pedir esmolas ou vender produtos na rua. O primeiro flagrante de que se tem conhecimento é do uso de mão de obra infantil indiana e paquistanesa na costura de bolas de futebol para a Copa do Mundo de 1998, sediada na França. Nas Olimpíadas de Beijing, em 2008, foram as miúdas mãos de trabalhadores chineses que se sujaram de vermelho e dourado para produzir mercadorias temáticas.
Ato contra exploração sexual na Arena Corinthians no dia 18 de maio de 2014 | Créditos: Divulgação
Os desdobramentos dos grandes eventos no Brasil
Existem atualmente 3,3 milhões de crianças e adolescentes brasileiros sujeitos ao trabalho infantil, segundo dados da Pesquisa Nacional de por Amostra de Domicílio (PNAD). De acordo com dados do Disque 100, durante o evento, foram 11.251 denúncias de abuso contra crianças e adolescentes – 69% dos casos nos 12 estados-sede, sendo que 25 denúncias de abuso contra crianças e adolescentes, segundo a Secretaria de Direitos Humanos (SDH), estão diretamente relacionadas à Copa do Mundo, em sua maioria envolvendo trabalho infantil e exploração sexual.
Anna Flora Wernick, coordenadora de programas da Childhood Brasil, acredita ser importante considerar que grandes eventos não estão restritos necessariamente a cerimônias desportivas, portanto, as práticas de prevenção criadas nele se constituem como práticas de cotidiano mais consciente. “É importante lembrar que toda cidade hospeda grandes eventos. No caso do Rio, o Carnaval, Réveillon, Rock in Rio e outros mexem com a cidade com uma intensidade semelhante. Os riscos para crianças e adolescentes são os mesmos e a necessidade de uma resposta da rede também.”
A fim de incidir sobre a vulnerabilidade de crianças e adolescentes que órgãos públicos e entidades privadas se articularam, em 2012, pela criação de uma Agenda de Convergência Proteja Brasil. “Foi uma iniciativa intersetorial, sob a coordenação da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República”, explica Anna Flora. Por meio da articulação desses setores, criaram-se Comitês de Proteção Integral de Crianças e Adolescentes em cada uma das cidades-sede. A iniciativa envolveu 2,5 mil pessoas, que se articulavam em sistemas de plantão. O enfoque das ações estava na temática de exploração sexual infantil.
Anna Flora aponta que um dos legados importantes dessa mobilização é que os comitês seguem ativos. “A mobilização da rede, através dos comitês, forçou a criação de sinergias e melhoras dos fluxos locais para encaminhamentos de diferentes violações de direitos”. Ela complementa que os comitês também facilitaram a comunicação entre setores que antes não conversavam com tanta intensidade sobre perspectivas de prevenção e proteção, como a segurança.
Manifestação contra a realização das Olimpíadas Rio 2016, realizada na praia de Copacabana em agosto de 2015 | Crédito: Tomaz Silva/Agência Brasil
Organização para os próximos eventos
É esperado um fluxo de 500 mil a um milhão de turistas durante os Jogos Olímpicos de 2016 a serem realizados esse ano, no Rio de Janeiro. Pela televisão, a expectativa de audiência é de cerca de 4,5 bilhões de pessoas. Acumuladas as experiências tanto na Copa das Confederações quanto na Copa do Mundo, criou-se o projeto Rio 2016: Olimpíadas de Direitos da Criança e Adolescente. Realização da Frente Nacional dos Prefeitos (FNP), com cofinanciamento da União Europeia e outros parceiros. Diferentemente do evento anterior, essa ação abre o leque para outras formas de exploração, incluindo o trabalho infantil.
O objeto da ação é, segundo as palavras do prefeito de Cariacica (ES) e vice-presidente de Esporte da FNP, Geraldo Luzia de Oliveira Júnior, mais conhecido como Juninho: “a proteção integral da criança e do adolescente nas Olimpíadas e Paraolimpíadas 2016, com os objetivos de sensibilizar a sociedade sobre ao assunto; esclarecer a população sobre violações mais recorrentes dos direitos das crianças e adolescentes e informar qual o fluxo de atendimento e órgãos que deverão ser acionados em caso de violações”.
O projeto se divide em quatro eixos: capacitação da rede local de atendimento durante os jogos; capacitação de jovens voluntários para sensibilização direta em locais de grande circulação do público e desenvolvimento de uma campanha de comunicação de grande porte e fortalecimento e ampliação da atuação de rede de gestores municipais. Juninho fala sobre a capacitação da rede local de atendimento nas Olimpíadas – aproximadamente 480 pessoas – além da formação de voluntários brasileiros e internacional, com principal foco nos jovens cariocas por sua capacidade de articulação.
A Childhood Brasil, que apoia a ação, consolidou uma parceria com o Comitê Organizador dos jogos Rio 2016, para alimentar as intervenções com conteúdo sobre o tema. Eles irão enviar conteúdo para as Rodadas Temáticas (encontros mensais com os principais agentes da rede de proteção) para potencializar as ações preventivas e protetivas durante os jogos. Há também o engajamento com a produção de uma pesquisa sobre como melhor o monitoramento das regiões de risco.
“Uma vez que as Olimpíadas são uma grande vitrine para o mundo e até mesmo dentro do país, poder falar de proteção de crianças e adolescentes através deste canal é uma excelente oportunidade para aumentar a sensibilização sobre as violações e engajar a sociedade em ações de proteção”, finaliza Anna Flora. Com olhos e holofotes voltados para o combate ao trabalho infantil, é de se esperar que essa vitrine não seja momentânea, e que o legado de ações como essa permaneçam para não só incidir em grandes eventos, como também suas ocorrências no cotidiano.