Crédito: Reprodução do livro Carvoeirinhos, de Roger Melo, que aborda o trabalho infantil em carvoarias
“O Alexandre tem dez anos, mas enche forno e tira como homem. A Janaína ajuda mais. É pior do que macho para trabalhar. Tem doze, parece mais novinha que o Alexandre porque é menorzinha. Ninguém diz que ela faz o que faz. Encher forno, tira forno, é trabalhadeira e não se escora”.
Trecho do livro Crianças de Fibra, de Jô Azevedo e Iolanda Huzak
Por Cecília Garcia, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz
Para os olhos da criança, a única parte que se vê de seu corpo coberto de fuligem, o forno deve parecer um monstro de temperamento moderado: ele solta fogo pelas ventanas, tem um apetite voraz por árvores que já foram verdes e quando está descontrolado, avança com labaredas queimando braços e pernas. As crianças sabem que cabem dentro da sua boca, porque é essa razão de trabalharem em fornos de carvoarias. E sabem também que as chances de virarem adultos e continuarem a alimentar esse monstro forno, materialização bem pertinente do processo predatório da feitura de carvão vegetal, é grande. Afinal, são os seus pais que com a pele igualmente escura, igualmente invisível, que estão ao seu lado passando a madeira para queimar.
Dessas bocas de forno e das mãos dos carvoeiros que nelas trabalham, escoram no ano de 2015 mais de seis milhões de toneladas de carvão vegetal: o país é o maior produtor mundial da substância, direcionando-a principalmente para produção de ferro-gusa e aço. É uma cadeia produtiva agressiva, desde a plantação de florestas de eucaliptos – chamados desertos verdes, onde não há um bicho que sibile nem fruta que brote – até a carbonização da madeira extraída que se em condições insalubres ou irregulares expõe a vida de seus trabalhadores a riscos físicos e psicológicos. Para atender um mercado igualmente agressivo, de demandas rápidas e desejo pelo menor custo possível, não é de se espantar que carvoarias representem um quinto das empresas denunciadas por trabalho escravo.
Escravo sim, ou análogo à escravidão, porque além do Brasil ser sido um dos últimos países a abolir a escravidão, é também uma nação onde ela não desapareceu por completo: transfigurou-se, mas ainda está nos barracões entre os fornos onde famílias inteiras dormem após de uma jornada extenuante das 5h até as 18h, também no carvão que trepida nas churrasqueiras de quem os compra sem saber da procedência. O trabalho infantil em carvoarias anda de mãos dadas com as denúncias de trabalho análogo a escravidão – razão talvez essa de uma não sistematização de dados – porque eles são parte de um círculo vicioso: a criança que trabalha no forno é o adulto que continuará nele.
E ainda que assim pareça aos olhos das crianças, o monstro não é o forno, e sim toda uma cadeia de produção que envolve não somente as relações entre trabalho e empregador, como também estado e propriedade, e sociedade com os bens de consumo. A ética de saber de onde vem o que é consumido, e quem perde dedos e pulmões para que a carne grelhe nos churrascos aos domingos.
A terra das crianças que não crescem
Às crianças que a tudo falta não espicham nem crescem na métrica natural do corpo humano. Quando o oficial de projetos da OIT (Organização Internacional de Trabalho) Luis Fujiwara perguntou à mãe de crianças retiradas do trabalho em carvoarias o que havia se transformado agora que elas podiam ir para a escola, a mãe respondeu simplesmente: elas cresceram! “Cresceram como?”, perguntou ele, sem entender. “’Ora, moço, cresceram! Cresceram de tamanho, engordaram, ganharam altura!’ Para você ver o efeito perverso no desenvolvimento físico, psicológico e cognitivo de crianças que se encontram nessa situação absurda”.
É por não crescerem que cabem nos fornos, e não crescem justamente por cozinhar no fogo lento do trabalho. O trabalho infantil em carvoarias é considerado uma das piores formas de trabalho infantil pela lista TIP. Em carvoarias de estados como Mato Grosso do Sul, Pará, Goiás, Mato Grosso e Tocantins, crianças e adolescentes são expostos a temperaturas médias de 70°C, sujeitando-se a mutilações por queimaduras. A queima do carvão libera uma áspera fumaça, que pode causar problemas respiratórios como a tuberculose, além de outras doenças provindas de ambientes insalubres como tétano, Doenças de Chagas e problemas musculares devido à repetição dos movimentos.
Os dados quantitativos pouco precisos do número de crianças em carvoarias estão entrelaçados a essa ser uma das formas de trabalho infantil mais atrelada ao trabalho análogo à escravidão. Ainda que haja uma imprecisão numérica, não há a menor dúvida sobre o perverso círculo ao qual essa criança está inserida: o ciclo do trabalho infantil e do trabalho escravo.
“Se você vive no trabalho escravizado, acontece de forma muito frequente a desestruturação familiar em virtude da migração. A pobreza, a desigualdade e a desestruturação podem levar ao trabalho infantil. Este, por sua vez, leva à evasão escolar e ao analfabetismo, que leva a exclusão socioprodutiva e ao déficit estrutural, que retorna o indivíduo ao cenário de vulnerabilidade e exclusão social – e este leva novamente o trabalho escravo”, Luis assim detalha o ciclo.
A terra das leis maleáveis e das vistas grossas
Ainda que as leis brasileiras sejam absolutamente claras em relação ao trabalho análogo à escravidão e ao trabalho infantil, o país é signatário das convenções a OIT no tocante a esses assuntos e considerado modelos em termos de Constituição, ainda há problemas graves a serem resolvidos. “No arcabouço legal, somos um país muito avançado. Mas de modo geral, no generis da humanidade, somos conhecidos por ser um país de lei que pega e não pega”, complementa o advogado. “Falamos então de questões ideológicas, culturais e funcionais de nosso sistema judicial.”
A própria flexibilização da lei – o que configura uma construção de frase absurda porque não pode haver maleabilidade em uma regra talhada na Constituição de um país democrático – é sintomática de uma sociedade civil que também é maleável quanto ao que tolera e o que não tolera. “Mais do que uma tolerância social, existe um desconhecimento da sociedade. É comum as pessoas falarem: ‘Eu também trabalho 14 horas por dia, então sou um escravo!’. É uma situação absolutamente diferente: uma pessoa que 14 horas por dia e ganha um salário X e uma pessoa que trabalha no mesmo horário e não ganha nada, nem para pagar uma suposta dívida com seu explorando”.
O desconhecimento incide também no próprio papel de cidadão com relação ao trabalho escravo e trabalho infantil. A produção desenfreada, que não respeita os direitos humanos, existe dentro das vistas grossas de um consumista pouco interessado em saber onde o que está sendo consumido é construído – a terra que é engolida no processo e os trabalhadores, pequenos e grandes, mastigados por ela.
Em dezembro do ano passado, a Repórter Brasil acompanhou a autuação em uma carvoaria em São Paulo por trabalho análogo a escravidão; a produção era voltada para carvão de churrasco. Dois adolescentes foram resgatados de condições como água puída, alimentação podre e jornada extenuante de trabalho.
A integralidade como combate ao trabalho escravo e ao trabalho infantil
As medidas de prevenção e de erradicação tanto ao trabalho análogo à escravidão quanto o trabalho infantil não são isoladas; combater parcelas não é suficiente quando existe uma cadeia viciosa que se beneficia diretamente da exploração de trabalho de baixo custo. É preciso um olhar integral para com todos que são parte dessa cadeia: o trabalhador, o mercado que o explora e o consumidor que o financia.
Fujiwara listou algumas das práticas importantes no combate ao trabalho análogo à escravidão e seus desdobramentos na exploração de trabalho infantil. O Ação Integrada é um movimento de um conjunto de diversos órgãos como a Organização Internacional de Trabalho, o Ministério Público do Trabalho e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República para o combate ao trabalho análogo a escravidão que interfere diretamente no ciclo produtivo.
O trabalhador resgatado, após o fim de seu seguro desemprego, muitas vezes volta para uma atividade não regularizada. É uma das iniciativas do movimento Ação Integrada promover qualificação profissional e pessoal para que esse trabalhador tenha outros meios de sobrevivência. “A pessoa vai ter conhecimento sobre direitos humanos, acréscimo educacional e será alfabetizada, além de formação profissional em áreas como agricultura”, sinaliza Luis. Assim, o nível de vulnerabilidade diminui, dificultando o aliciamento e cooptação pelo trabalho escravo. O projeto foi inspirado no Instituto Carvão Cidadão (ICC).
Sensibilizar a população da necessidade de compra de produtos que tenham uma cadeia de produção livre do trabalho escravo também é uma das frentes importantes no combate a ele. Luis exemplificou com o trabalho de mídia desenvolvido pela ONG Repórter Brasil, com a sua Lista Suja do Trabalho Escravo, esclarecendo quais empresas violam os direitos de seus trabalhadores. Eles também fizeram um aplicativo chamado Moda Livre, para alertar sobre as marcas de roupa que utilizam trabalho escravo, sendo o setor têxtil um dos lugares com mais incidência.
O combate ao trabalho infantil em carvoarias, contudo, se assemelha a outras questões no Brasil, como a do aborto ou a da violência doméstica contra a mulher – são crimes subdimensionados, cujas denúncias são apenas a ponta do iceberg. “Como todo crime organizado, ele é subterrâneo. Temos como base o registro que o Estado fornece e obviamente ele não dá conta do fenômeno como um todo, mas simplesmente da parte visível”.
A colmeia dos trabalhadores miúdos
Crianças expostas ao trabalho infantil sabem da aspereza e do veneno tanto quanto o maribondo ou qualquer outro bichinho que pique e tenha a injusta fama de mau por só fazer o que é de sua natureza. É da índole do marimbondo construir ninhos pequenos, colmeias para um ovo só. Mas não é da natureza de meninas e meninos trabalharem em colmeias de fogo, cujos ovos queimando são inférteis, ovas negras de carvão. É da natureza de Roger Mello, o escritor e ilustrador do livro Carvoeirinhos, ganhador do prêmio Hans Christian Andersen, descascar a camada dos assuntos como quem destaca uma cebola.
Em ilustração e narrativa, o marimbondo protagonista, no meio sua cruzada para fazer seu ovo seguro, conta sobre os meninos que enfrentam a cruzada dos fogos da carvoaria. É um duro mundo, de vilões invisíveis, que não são nem o inseto ao não entender de trabalho infantil nem do menino que conhecemos por meio de seus olhos artrópodes. Roger, quando criança, passava pelos fornos nas estradas de Sergipe e Bahia, e se impressionava com as estruturas ovais onde adultos e crianças cobertos de fuligem trabalhavam. “Não conseguia entender o que era aquilo, ao mesmo tempo em que lembrava da vespinha que coloca o ovo em uma estrutura de argila que faz com sua própria saliva”.
A história contada nas cores cítricas do fogo e do carvão – tem o preto, rosa e laranja que ardem – perpetua uma tradição de livros que podem ser devorados por quem é pequeno, grande ou quem está no meio. “Se inventou há pouco tempo esse livro que seria o livro só para criança, que o adulto não aguentaria ler. Desse livro a criança não gosta. Tem falta de perigo demais. Como o adulto, ele também quer o conflito. Claro, a poesia também, mas a poesia sem o perigo ninguém quer”, fala o autor.
Com recortes e pedaços de plástico pintados, o livro conta uma ficção sem dicotomias. É por isso que a voz – zumbido – do marimbondo é o zumbido narrador; ele não faz julgamentos de um mundo desconhecido. Evita-se assim que o livro seja um livro sobre um tema per se; ele é uma obra sobre asas e picadas e se pode apreender umaa narrativa da infância brasileira, tão chamuscada ela pelo trabalho infantil, seja em carvoarias, na corte de cana, nos lugar onde todos podem ver ou só ver o que conseguiriam passar em fechaduras, como o próprio marimbondo. “O livro não é sobre trabalho infantil. É sobre aquele menino, as dores dele, seus medos e sua brincadeiras”, arremata Roger.
Para não retirar as camadas finais do livro nem estragar o prazer de sua leitura, pode-se falar que o marimbondo se humaniza e o menino continua humano, tristemente humano, com tudo que isso implica e que o prende. Não se sabem se zumbem marimbondos dentro das carvoarias das vidas reais, mas é suficiente saber que elas ainda existem e que ainda aprisionam, com seus grilhões duros, nunca de papel. E isso deveria ser o suficiente para que o questionamento perdurasse, zunindo, incomodando não ninguém em específico, mas a todos: se até um marimbondo se humanizou, por que os humanos não conseguem?
A propriedade sem sentido
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, XXIII diz da propriedade: atenderá à sua função social. De maneira bastante simplificada, é dizer que uma propriedade só assim o é se não fere direitos de indivíduos. Quando se formou na faculdade de Direito, a hoje roteirista Camila Agustini apresentou o artigo Trabalho infantil X direito à propriedade, defendendo, embasada em juristas nacionais e internacionais bem como o aporte dado pela própria Constituição, a ressignificação da terra que macula os direitos humanos. Ela explica: “Uma política de ressignificar as cessões e concessões de móveis públicos, dos prédios públicos e de terras públicas, tentado sempre enquadrar dentro da perspectiva da função social de propriedade: ela precisa atender não só quem quer uma terra para fazer algo com ela, mas uma série de dispositivos legais, constitucionais, fazendo sentido dentro do sistema”.
Nesse ponto de vista , quando nessa propriedade são detectadas e comprovadas denúncias de uso de trabalho escravo ou infantil, que essa propriedade seja recolhida de seu dono, e que ele não deva receber nenhuma indenização por isso. “Se essa propriedade não responde a essas séries de critérios que a própria constituição diz que é a sua função social, ela não é propriedade e não sendo, não tem proprietário e não deveria haver indenização. É um pensamento super progressista, mas que tem bastante fundamento”.
Mas ainda que no Brasil existam muitas terras esvaziadas de sentido há também quem as defenda ferrenhamente. Pode haver aparato legal e constitucional para evocar uma legislação infra inconstitucional, mas seria uma briga de gigantes. “O Brasil ainda não conseguiu fazer as discussões dessas terras, e vem conseguindo só agora autuar os proprietários que cometem esse tipo de infração, as que dizem respeito ao trabalho humano”, explica Camila.
Não seriam só enfrentar as barreiras do Judiciário – como, também, as que cerceiam os pensamentos da sociedade com relação ao direito à propriedade privada. “Seria uma discussão sobre valor mesmo, porque na verdade você está conseguindo explorar uma matéria-prima a baixíssimo custo, que sustenta um sistema milionário. Os direitos humanos surgem como um freio para dizer um patamar mínimo de dignidade possível, considerando a força de trabalho envolvida”, ela conclui.