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Crédito: Arquivo pessoal
Por Cecília Garcia, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz
Existe um panteão oculto de heróis brasileiros. Livros os escondem entre linhas ou citações vagas, a escola não os cola em cartazes pelos corredores, e os filmes, quando os retratam, acabam por embranquecê-los – como fazem com os egípcios nos longas-metragens hollywoodianos. Um panteão sombreado por outro, branco e aclamado, como se somente descendentes de europeus fossem os responsáveis por construir o Brasil, cultural e socialmente. Mas o paulistano Pedro Henriques Cortês, com apenas 14 anos, sabe mais. Bem mais. Ele entende que negros como ele foram o corpo, o cérebro e a alma visível e invisível da constituição do país.

Conhecer as andanças e feitos de gigantes como Dandara, Zumbi dos Palmares e Luiz Gama não é tarefa fácil, ainda mais para crianças. Em 2003 entrou em vigor (e com muito atraso histórico) a Lei 10.639/03, que torna obrigatória a inclusão da história afro-brasileira nas redes de ensino público. Sua aplicação, mais de dez anos depois, está longe de ser adequada, com resultados ainda não precisos: estima-se que em apenas 10% das mais de 5 mil escolas públicas brasileiras houve algum mudança curricular.

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Quando se folheiam os livros didáticos de História, a gravidade dessa falta é notória. Quando muito, há capítulos dedicados ao genocídio que foi a escravidão ou às heranças culturais que, embora muitos importantes, já foram abordadas à exaustão, como o samba e a capoeira. São essas as páginas folheadas em escolas públicas e particulares, e quando uma criança negra não se vê nos livros, ou se encontra espelhada em lugares-comuns, ela tem dificuldades de se sentir representada e gostar de si própria.

A representatividade – como também sua falta – afetam profundamente o desenvolvimento das crianças. O artigo Infância Negra, das autoras Sephora Santana Souza, Tarcília Melo Lopes e Fabianne Gomes da Silva detalha o exílio representativo, sentimento que meninos e meninas negros compartilham por se verem isolados de representações comuns, como contos de fada ou figuras históricas. “A identidade da criança negra está em processo de construção e se constitui nas interações sociais. Por isso, é fundamental que ela encontre na escola elementos significativo referente à sua etnia, proporcionando a percepção da sua autoestima”, relata uma das passagens do texto.

 

Pesquisa e resgate
Pedro Henrique Cortês encontrou a centelha de representatividade dentro de casa. Sua mãe sempre fez questão de que o lar fosse muito bem frequentado por heróis e heroínas negros, estivessem eles em livros ou em conversas descontraídas. Foi uma provocação dela que fez Pedro Henrique se questionar o motivo de não conhecer os heróis de seu próprio país. Após ter assistido à peça O Topo da Montanha, encenada por Taís Araújo e Lázaro Ramos, Pedro ficou curioso sobre a história de Martin Luther King. Assim, pediu à sua mãe um presente: as biografias de Martin, de Nelson Mandela e de Malcolm X.

A mãe argumentou que só daria os livros de presente se Pedro se dispusesse a pesquisar e conhecer a histórias dos heróis e heroínas brasileiros. Pesquisando entre livros, internet e com a ajuda da família, o jovem percebeu a dificuldade em encontrar informações sobre os ídolos negros nacionais. Na escola onde estudava, tudo que ele ouvia era estereotipado. “Falar rasamente de Zumbi, das danças, comidas e música, é desprezar tudo que esses homens e mulheres célebres fizeram!”, opina.

Pedro se considera muito tímido. A fim de se tornar mais desenvolto, criou o canal PHCortês no YouTube. Logo percebeu que o conhecimento acumulado em suas leituras e pesquisas precisava ser compartilhado. Começou, no simbólico 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, a série Heróis Brasileiros. Nela, aborda com sabedoria acima de sua idade, sem deixar a irreverência natural de um adolescente de sua idade, sobre fatos e anedotas de personagens negros importantes da história brasileira.

O primeiro a ser retratado foi Zumbi dos Palmares. No começo do vídeo, Pedro já avisa: para quem não tem orgulho de suas raízes brasileiras, é melhor fechar o vídeo, pois as histórias que ele conta bebem sem fim nas peripécias orgulhosas de seus protagonistas.

Seguiram-se então outros grandes nomes, como o advogado abolicionista Luiz Gama, o escritor Machado de Assis – um dos favoritos de Pedro.  “Um célebre escritor, aclamado no mundo. Negro, gago, epilético, pobre. Ele derrubou tantas barreiras para chegar onde chegou, foi genial!”, afirma, com convicação. Pedro dedicou uma das gravações a João Cândido, líder almirante de umas das revoltas negras mais importantes, a da Chibata.

A heroína quilombola Dandara e a escritora Carolina de Jesus foram as primeiras mulheres sobre as quais Pedro falou, sendo Dandara também uma de suas grandes referências. “Imagine, naquela época uma mulher deter práticas de guerrilha e ser de fato uma líder! Ela era tão líder quanto Zumbi.”

O vídeo mais recentemente gravado foi sobre uma heroína contemporânea, “a mulher do fim do mundo”, como é conhecida a cantora Elza Soares. Se o bloco Ilú Obá de Min recentemente a homenageou, levando-a pelas ruas de São Paulo durante o Carnaval, Pedro também a relembra como uma musicista icônica e mulher muito à frente de seu tempo. De todos os tempos.

Ainda que não faltem matérias sobre o seu trabalho e que os comentários de seus vídeos sempre o encorajem a continuar, até mesmo sugerindo outros personagens, Pedro é bastante modesto em relação ao alcance do seu canal. “Não sei se posso influenciar, mas pelo menos há uma reflexão sobre esse assunto que parece tabu em todos os núcleos, tanto escolar, como familiar e social”. Hoje o seu canal conta com mais de 10 mil inscritos, e são muitos os educadores que prezam e dizem utilizar o seu material dentro das salas de aula.

Um herói que figura em um panteão, o historiador Franz Fanon – autor do livro Pele Negra, Máscaras Brancas, escreveu que “a consciência é uma atividade transcendente”.

Os olhos de Pedro refletem uma história que corre violenta e brava em suas veias – e na veia de todos brasileiros, conscientizando o ato de se importar, de reconhecer nossas raízes. Sem perceber, e talvez fique mais tímido se ouvir o elogio, Pedro também se torna parte dessa constelação de heróis, simplesmente por jorrar uma rara luz sobre eles.

Um menino entre gigantes negros cria canal no YouTube para resgatar a história afro-brasileira
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