Fundo das Nações Unidas pela Infância (Unicef) se une à Luta pela Paz, Redes da Maré e ao Observatório de Favelas para desenvolver ações de segurança alimentar, prevenção à violência e apoio psicossocial por três meses em comunidade no Rio de Janeiro.
“O contexto da favela é afetado por diversas vulnerabilidades e opressões construídas historicamente. A violência que impacta o cotidiano dos moradores – assim como os diversos marcadores sociais de diferença de raça, gênero e classe, produz consequências decisivas na saúde física e mental da população”, resume Juliana Tibau, diretora executiva do Luta pela Paz.
E foi para minimizar esse cenário, acentuado pela pandemia da Covid-19, que essa organização da sociedade civil se juntou à Redes da Maré e ao Observatório de Favelas, contando ainda com apoio da UNICEF, para a criação do projeto “CRIAndo Rede: proteção à vida de crianças e adolescentes na Maré”, na comunidade localizada na zona norte do Rio de Janeiro.
O Conjunto de Favelas da Maré é o maior do Rio de Janeiro e um dos maiores do Brasil. São 16 comunidades e 140 mil moradores que, segundo o Censo Maré: 52% têm até 30 anos, sendo 24,5% com até 14 anos e 27,4% entre 15 e 29 anos.
Entre os meses de julho e setembro de 2020, cada instituição trabalhou de forma colaborativa dentro de sua expertise e aporte metodológico para enfrentar e diminuir os impactos causados pelo isolamento social nos jovens, tais como: perda de renda, insegurança alimentar, interrupção de serviços públicos, restrição aos espaços de trocas e convivência, aumento ou aprofundamento das demandas de saúde mental.
A dificuldade de acesso a alimentos de qualidade foi um dos fatores que mais se agravaram na pandemia. A má nutrição coloca em risco o desenvolvimento de jovens e crianças, dificulta a aprendizagem, contribui para a baixa imunidade e o aumento de infecções.
Dentro dessa rede de proteção a jovens, a Redes da Maré identificou 8.764 famílias para a entrega de cestas básicas ou cartões de alimentação, além de kits de higiene, impactando cerca de 30 mil pessoas. Ainda dentro do CRIAndo Rede, a organização monitorou casos de Covid-19 por meio do boletim De Olho no Corona – um canal de acolhimento de moradores que também informa sobre direitos, violações e políticas públicas.
A violência como realidade
“O território não é violento, o território é violentado e sofre vários impactos e atravessamentos de violência”, afirma um conselheiro tutelar em um dos depoimentos reunidos no boletim “Violência contra crianças, adolescentes e jovens da Maré na pandemia”, produzido pelo Observatório de Favelas. “A guerra impede a gente de ter esse direito à comunidade. Eu cresci ouvindo que eu nunca poderia ir para a outra parte”, afirma um jovem no mesmo documento.
A pesquisa sobre violência foi feita por meio de questionários e entrevistas com pessoas que atuam ou moram lá no território. “Procuramos identificar dinâmicas de violência que já estavam presentes antes da pandemia e analisar como foram afetadas por este novo contexto”, explica Raquel Willadino, diretora do Observatório.
Um dos pontos mais marcantes é a violência policial, que atinge especialmente jovens negros do sexo masculino, mas o coleta de informações foi além. “O estudo também apresenta dados sobre outras modalidades de violência, como a violência psicológica, a violência doméstica, a violência sexual, entre outras dinâmicas que também atravessam as vivências de jovens”, especifica a diretora.
Com um diagnóstico em mãos, foi possível traçar estratégias de prevenção de casos. Essa primeira etapa da pesquisa já foi apresentada a organizações da sociedade civil e profissionais que atuam em equipamentos públicos da rede de proteção. O resultado completo do estudo será veiculado em breve.
O segundo episódio do FavelaPOD, do Observatório de Favelas!, é inspirado no boletim “Violências contra crianças, adolescentes e jovens da Maré na pandemia”. O podcast revela a atuação dos Conselheiros Tutelares responsáveis pela região da Maré.
Apoio à saúde mental
“A pandemia agravou os problemas de saúde mental”, afirma Juliana Tibau. Quadros de depressão e outros distúrbios relacionados já estavam sendo identificados pela Luta pela Paz e foram agravados com a chegada da pandemia.
A crise sanitária provocou adoecimento, hospitalização ou morte de pessoas próximas. As medidas de isolamento social provocaram perda de renda e emprego, e a restrição de acesso a espaços seguros, como escolas.
O fechamento de escolas interferiu na rotina e nas relações interpessoais dos estudantes, que também vivenciaram o aprofundamento do estresse em casa. “O aumento do tempo de permanência e de contato dentro do lar pode favorecer as tensões e os conflitos e, até mesmo, episódios de violência. Isso implica no aumento de casos de violência intrafamiliar, geralmente dirigida às mulheres e aos filhos”, conta Juliana.
As estatísticas apontam nessa direção. Na comparação de abril deste ano com o mesmo período de 2019, o número de denúncias de violência contra a mulher cresceu 35%, de acordo com o Ministério Público do Estado Rio de Janeiro.
Os jovens tiveram dificuldades no ensino remoto, tanto pela falta de acesso à tecnologia quanto pela dificuldade dos responsáveis no apoio ao processo de aprendizagem. Segundo Juliana Tibau, tais fatores contribuem para o aumento da evasão escolar.
Considerando esses desafios, os psicólogos do Luta pela Paz colocaram em prática os Diários da Quarentena para ajudar adolescentes e jovens que sofrem com graus leves ou médios de ansiedade. A metodologia é baseada no registro cotidiano de emoções, sentimentos, pensamentos, vontades e atitudes os quais, às vezes, não temos coragem de expor para outras pessoas, seja por medo, vergonha, desconhecimento ou confusão.
A organização ainda realizou cerca de 300 visitas domiciliares e ofereceu espaços online seguros de apoio psicossocial a mais de 600 crianças, adolescentes e jovens.
É importante destacar a participação de cerca de 30 jovens mobilizadores, que atuaram como agentes promotores da saúde mental produzindo e disseminando conteúdos sobre a temática. Mais do que ações que tragam apoio efetivo para amenizar essas questões, fica a lição de que cuidar do bem-estar envolve muitos outros fatores.
“A saúde mental perpassa a questão da saúde, que não é só ter remédio, mas também ter acesso ao mercado de trabalho, a vínculos familiares consolidados, saneamento básico, direito à escola, direito à comida, direito inclusive a internet. O fortalecimento desta rede foi fundamental”, disse Stallone Abrantes, psicólogo do Luta pela Paz, ao FavelaPod.