Entenda o cenário que envolve a retomada das aulas presenciais, considerando as diversas realidades e contextos no país.
Para educadores, estudantes e pais, o início do ano é sinônimo de volta às aulas. Em 2021, no entanto, o mesmo período foi marcado por incertezas e inseguranças impulsionadas por uma pandemia global ainda não superada. Em meio ao cenário complexo, a decisão foi tomada: as redes de ensino, públicas e privadas, foram autorizadas a definirem o momento de retorno às aulas presenciais, considerando a realidade cada região.
Grande parte da rede particular já retomou, apostando no ensino híbrido. No caso das escolas públicas, que atende a 80% dos estudantes brasileiros, a retomada varia de acordo com as particularidades de cada região. Com exceção da Bahia, que ainda não definiu datas para nenhuma das redes, os demais estados já tem previsão de voltar às aulas presenciais até maio.
As condições para o retorno estão atreladas ao controle das taxas de transmissão do coronavírus. É importante mencionar que o Brasil apresenta picos de transmissão e já foram contabilizados mais de 250 mil óbitos desde março de 2020. O único ponto em comum entre as múltiplas realidades da educação brasileira é a necessidade de cumprir os protocolos de segurança recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em caso de retorno. A organização internacional recomenda, ainda, que os governos deem prioridade para a reabertura das escolas, caso a transmissão de Covid-19 esteja controlada nas áreas próximas à comunidade escolar.
Protocolos de segurança recomendados pela OMS na volta às aulas
- Diminuição do número de estudantes e educadores em sala;
- Uso de máscaras, distanciamento nos espaços compartilhados;
- Lavar as mãos com frequência;
- Escalonar os horários e atividades que envolvem aglomerações.
Fonte: Organização Mundial da Saúde (OMS)
O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) também parte dessa perspectiva, alertando sobre o risco de manter os jovens fora da escola por um longo período, deixando-os mais vulneráveis a violações físicas e psicológicas, déficits no desenvolvimento e evasão escolar.
Por outro lado, em casos como o Brasil, onde muitas escolas não contam com a infraestrutura necessária para o cumprimento dos protocolos de segurança, seguir a tendência mundial de retomada torna-se mais complexo.
“O debate sobre a reabertura não se restringe apenas aos riscos dentro das escolas. Para proteger pessoas e valorizar a educação, é imprescindível a construção de políticas públicas e ações intersetoriais, flexibilizando as medidas de acordo com as múltiplas necessidades de um país tão grande quanto o Brasil”, afirmou a Dra. Estela Aquino, especialista em saúde coletiva e epidemiologia, durante evento de lançamento do manifesto “Ocupar escolas, proteger pessoas e valorizar a educação”.
Desenvolvimento e a equidade a longo prazo
Um dos argumentos a favor da retomada das aulas presenciais gira em torno dos prejuízos para o desenvolvimento social, emocional e cognitivo dos 47,3 milhões de estudantes da Educação Básica. Com as escolas fechadas para o ensino presencial há um ano, os impactos na educação formal, bem como o aumento das taxas de depressão, ansiedade, obesidade infantil e evasão escolar podem representar, a longo prazo, consequências tão difíceis de lidar quanto os efeitos do próprio vírus.
Uma pesquisa da Fundação Getulio Vargas (FGV), encomendada pela Fundação Lemann, mostra que a educação brasileira pode retroceder até quatro anos nos níveis de aprendizagem devido à necessidade de suspensão das aulas presenciais na pandemia, com o agravante da dificuldade no acesso ao ensino remoto. O estudo mostra o impacto que as aulas remotas trouxeram para pessoas negras e alunos com mães que não concluíram o Ensino Fundamental. Os dados ainda indicam, que tanto alunos dos anos finais (do 5º ao 9º) do Ensino Fundamental, quanto aqueles do Ensino Médio, podem ter deixado de aprender o equivalente a 72% do aprendizado de um ano típico, em língua portuguesa e matemática.
Embora os estudos científicos sejam atualizados constantemente, até o momento as evidências apontam para uma menor vulnerabilidade de crianças e jovens ao novo vírus. Segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), no Brasil os óbitos por Covid-19 em menores de 20 anos variam entre 0,6% e 0,7% do total de casos.
“Ao contrário do que supúnhamos no início, as crianças não são o principal vetor de transmissão do coronavírus. Estudos em outros países, que já passaram pela reabertura, comprovam que a escola não é um espaço tão significativo para a disseminação quanto outros espaços públicos aos quais as famílias já estão expostas, como restaurantes e shoppings, por exemplo”, explicou Marco Sáfadi, Presidente do Departamento de Infectologia da SBP, em live organizada pela Jeduca.
Outro ponto que reforça a urgência da retomada são as desigualdades socioeconômicas, que impedem o acesso igualitário desses estudantes ao ensino remoto. O levantamento Acesso Domiciliar à Internet e Ensino Remoto Durante a Pandemia, realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), aponta que seis milhões de estudantes brasileiros, da pré-escola à pós-graduação, não dispõem de acesso domiciliar à internet. Desse total, 5,8 milhões são estudantes de escolas públicas.
Sem infraestrutura, sem vacina, sem retorno
Se por um lado há o argumento de que as crianças não são as mais vulneráveis ao coronavírus, os cerca de 580 mil professores da Educação Básica que têm entre 50 e 60 anos, partem de outra perspectiva. Reabrir as escolas significa aumentar consideravelmente a circulação de pessoas na comunidade escolar, que inclui desde familiares até funcionários. Mesmo com riscos evidentes, os educadores continuam sem uma data definida para iniciar a vacinação.
Segundo o Plano Nacional de Imunizações (PNI) e informe técnico divulgado pelo Ministério da Saúde, trabalhadores da educação do Ensino Básico (creche, pré-escolas, Ensino Fundamental, Ensino Médio, profissionalizantes e EJA) e do Ensino Superior fazem parte do grupo prioritário, que somam mais de 77,2 milhões de brasileiros, mas estão abaixo da 15º posição na ordem da lista para a vacina.
Sem a garantia de proteção da vacina, os educadores sentem-se ainda mais inseguros. Uma parcela deles foi entrevistada para a pesquisa Sentimentos e Percepções dos Professores Brasileiros nos Diferentes Estágios do Coronavírus no Brasil, realizada pelo Instituto Península. Considerando uma escala de 0 a 5, os participantes classificaram em 1,07 o nível de conforto com relação à retomada das aulas.
Em entrevista ao Jornal A Tarde, da Bahia, o médico e infectologista Fábio Amorim, ressaltou essa preocupação, uma vez que as crianças, mesmo apresentando menor risco de infecção, estarão inseridas em um nicho social com pessoas vulneráveis, como professores e demais profissionais da escola. “Não dá para dizer que o sistema está em colapso, mas está em vias disso. A fila de espera, a forma como está se dando…acho que a gente ainda vai passar por momentos terríveis”, afirma.
Neste 1° de março, Secretários Estaduais de Saúde publicaram uma carta, assinada pelo presidente do Conass (Conselho Nacional dos Secretários de Saúde), afirmando que o Brasil vive o pior momento desde o início da pandemia e pedindo maior rigor nas medidas de segurança para evitar um colapso em todo o país. Entre as reivindicações, sugerem a suspensão das atividades presenciais de todos os níveis da educação.
Segundo levantamento realizado pela Melhor Escola, plataforma que conecta estudantes às escolas, somente 46,7% das escolas públicas têm acesso a saneamento básico. Além disso, apenas 30% delas dispõem de espaço aberto com áreas verdes, para melhor circulação do ar. O mapeamento foi feito em 2020, com objetivo de avaliar as condições das redes estaduais e municipais para o retorno presencial. Em muitos estados, os sindicatos de professores se articularam para levantar esses pontos, reivindicando o não retorno até que os profissionais da educação estejam vacinados.
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A dinâmica familiar em um cenário dividido
Neste contexto complexo de retorno às aulas presenciais, há de se considerar também o lado dos pais e familiares. Com as medidas de distanciamento físico, as famílias tiveram de reorganizar as rotinas para conciliar vida profissional e pessoal. Muitos pais não puderam trabalhar de casa, e por isso tiveram de confiar os filhos aos cuidados de avós ou cuidadores, prática que aumenta a chance de disseminação do vírus.
Ao mesmo tempo em que o retorno das aulas facilita a organização da dinâmica familiar, também traz incertezas sobre a segurança que o ambiente escolar pode oferecer.
Uma pesquisa publicada em agosto de 2020 pelo Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) mostra que o coronavírus pode causar uma síndrome rara no coração de crianças e adolescentes, podendo levar a óbito.
Além disso, as crianças tendem a ser assintomáticas, podendo elevar as taxas de transmissão quando em contato com os familiares, sobretudo aqueles do grupo de risco. Segundo estudo realizado pela Fundação Oswaldo Cruz em 2020, estima-se que 9,3 milhões de adultos e idosos correm o risco de entrar em contato com o vírus através dos estudantes.
“A maior preocupação está relacionada à necessidade de uma mudança cultural na mentalidade dos gestores, familiares, educadores e estudantes. Somente uma boa infraestrutura não é sinônimo de preparo. As famílias também terão de refletir sobre seus hábitos e particularidades para que seus filhos tenham um retorno seguro”, afirmou Frederico Amâncio, Secretário Municipal de Educação de Recife, em entrevista para a Jeduca – Associação de Jornalistas de Educação.
Para Ivan Gontijo, coordenador de projetos do Todos pela Educação, voltar ou não às escolas é uma decisão coletiva, que passa por uma conciliação de prioridades e envolve também a gestão escolar. “Cabe aos gestores e secretários propor um diálogo a partir da escuta. Informar sobre os protocolos, as medidas de segurança, ouvir cada caso e avaliar o planejamento do ano letivo com flexibilidade”, conclui.